ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE texto ampliado




REGISTRO:   2670/14 e 11.903

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ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE (texto ampliado)
             


PERSONAGENS:


EUCLIDES
DULCINÉIA
DIABO


      Em cena apenas Euclides.  Ar ansioso, aflito caça algo nos bolsos.
EUCLIDES
O que não daria pra fumar um cigarro! Vinte anos sem dar um trago. Vinte anos perdidos meu Deus... Vinte anos me controlando pra não morrer de câncer de pulmão e morro de enfarte! E agora? Quem vai compensar os cigarros que não fumei? As tragadas que não dei. Até brócolis eu comi. Suco de beterraba. Baixa a pressão diziam... Morri com a pressão de um menino. Sacanagem... ‘O cigarro diminui o tempo de vida!’ Faz  diferença morrer meio dia ou meio dia e meia? To eu agora já morto, morrendo de vontade de fumar.  Que fissura... Se São Pedro aparecer  vou filar um cigarro dele. Dizem que o céu e cheio de maravilhas. Se tiver cigarro aqui deve ser uma delícia. Vai ver tem Narguile. Nossa! O narquile do Paraíso deve  ser foda. Como será que foi o meu enterro? Espero que tenham colocado a bandeira da Souza Cruz no meu caixão. E uma frase dizendo: “ Vocês tinham razão!” Vai ver me concentro e o cigarro aparece.  Deve ser assim aqui.  Como nos filmes.  Quer dizer... nos filmes aparece alguém, uma coisa solene.  Comigo ta tão parado... Pensei que Jesus em pessoa recebesse a gente. (Se arrepende do que disse) Não! Jesus não. Se eu pedir um cigarro pra ele pode dar merda... Fosse no Céu do Deus Jah Jamaicano isso ia ta cheio de pé de maconha e baseado espalhado pelos cantos.  E no som de fundo tocando Reggae. Tipo aquelas férias que eu passei no Maranhão. Vou me concentrar!   (Se concentra) Um cigarro... um cigarro...um cigarro pelo amor de Deus... Não do Deus Jah ! O normal, o careta... faz assim... me manda um maço... Pode ser o Continental sem filtro. Um cigarro pelo amor de Deus...  
Entra Dulcinéia.  Ela se espanta ao ver Euclides.  
EUCLIDES
Um cigarrinho... um cigarrinho...uma guimba...uma bituca...
DULCINÉIA
Euclides!
   Euclides toma um susto ao vê-la.
DULCINÉIA
É você mesmo? Euclides.  Meu ex-marido... como é possível ? Você morreu?
EUCLIDES
Pelo visto você também... Que ta fazendo aqui?  Eu tava me concentrando... aí você apareceu... Será que é isso?! Trouxe o cigarro?
DULCINÉIA
Mas que cigarro? Ficou maluco? Claro que não!
EUCLIDES
Como não? Eu penso em cigarro e aparece minha ex-mulher que eu nem sabia que tinha morrido? Cigarro dá câncer... será que eles confundiram?
DULCINÉIA
Meu Deus... a quanto tempo a gente não se vê? Cinco anos?
EUCLIDES
Acho que mais... Tem certeza que não trouxe o cigarro? Vai ver colocaram no seu bolso.
DULCINÉIA
Não tem cigarro nenhum, idiota! Uma situação dessas e você pensando em cigarro? Não tinha parado de fumar?
EUCLIDES
Parei! Agora que morri não penso em outra coisa. Deu vontade de comer um torresminho a pururuca e tomar uma cachacinha, mas depois passou... Tem certeza que não tem nada no bolso? Eu me concentrei e você apareceu, só pode ser pra trazer o cigarro.
DULCINÉIA
A morte não lhe fez bem. Continua o mesmo de sempre e com o agravante de voltar a fumar. Essa e a única pergunta pra me fazer depois de cinco anos? Se eu trouxe o cigarro?
EUCLIDES
Se perguntar como está você responde o quê? ‘Morta’ !
DULCINÉIA
Alguém apareceu?
EUCLIDES
Você!
DULCINÉIA
Do que morreu?
EUCLIDES
Coração.
DULCINÉIA
Eu sabia! Eu sabia!
EUCLIDES
Não! Isso não! Tai uma coisa pra não se dizer  depois de cinco anos.
DULCINÉIA
Acredita agora que gordura e sal fazem mal?
EUCLIDES
Ta, ta, ta bom... Estava certa! Ta feliz? Ta feliz? E você? Qual dos teus ex-maridos te matou? Ou teria sido o atual? Eu tenho um álibi... eu tava aqui.
DULCINÉIA
Foi... foi num acidente de avião.
EUCLIDES (Surpreso)
Acidente de avião?! Consegue se pavonear até na morte? Impressionante. Era esperar demais ter sido atropelada por um ônibus.
DULCINÉIA
Pois é... Uns são vítimas da fatalidade do destino, outros de uma dieta inadequada...
EUCLIDES
Nem por isso está menos morta...  Como me arrependo de ter parado de fumar... O que não daria pra dar uma fumada agora... Daquelas de acender um cigarro na bunda de outro e continuar fumando... Ai que delícia...
DULCINÉIA
Que injustiça. O certo era ter vivido uns quinze anos a mais que você.  Aliás, o que  to fazendo aqui ao seu lado? Tem alguma coisa errada. Sempre pensei que Jesus viesse receber a gente.
EUCLIDES (Surpreso)
Quem?
DULCINÉIA
Jesus!
EUCLIDES
E fez alguma coisa pra merecer a honraria? Se te mandasse um e-mail já seria demais. Seria uma honra indevida.
DULCINÉIA
E nem fiz nada tão terrível pra ser recebida pelo ex-marido.
EUCLIDES
Alto lá! Não vim te receber não! Ta pensando que eu sou o quê? Porteiro de cemitério? Eu só pedi um cigarro.
DULCINÉIA
Li num livro espírita que os parentes recebem os recém-chegados.
EUCLIDES
Sou seu parente por acaso? Ex-mulher é parente? Ex-mulher é a parte contrária na vara de família.  A litigante!
DULCINÉIA
E o que faz aqui?
EUCLIDES
Eu morri lembra? E primeiro que você. Aliás, se surgir algum anjo vai cuidar do meu caso pra depois cuidar do seu. É por ordem de chegada.
DULCINÉIA
Ta mandando também? Ta organizando a fila? Se o anjo for enumerar seus pecados  passo o dia todo aqui.
EUCLIDES
Vai ao shopping querida. Na volta me traz um maço de cigarros.
DULCINÉIA (Andando de um lado para outro)
Tem alguma coisa errada aqui. Ô... alguém... tem alguém me ouvindo? (Olha pra cima, fala para o alto) Alguém se enganou. Esse aí não é meu parente não. É meu ex-marido. E em vida  nunca foi boa coisa...
EUCLIDES
Eu era um ser humano melhor antes de casar com você...    
DULCINÉIA
Eu não aceito ficar no mesmo lugar que esse sujeito! Tem alguma coisa errada... A morte é um momento solene, onde as verdades maiores se manifestam... Eu morro e dou de cara com você? Não é possível!
EUCLIDES

É... pra quem tava esperando Jesus Cristo, reconheço que é pouco... Quanto às verdades maiores, ficou demonstrado que existe algo além da morte. 
DULCINÉIA
Pois é... o senhor não era materialista ferrenho? “Morreu acabou”. Olha só tonto?!
EUCLIDES
Eu me enganei duplamente.  Devia ter acreditado em Deus e continuado a fumar.
DULCINÉIA
Na atual situação... eu escolheria melhor as palavras.
EUCLIDES
Por isso inventou essa estória de que ‘leu num livro espírita’? Que eu saiba você só compra o livro depois de ver o filme.
DULCINÉIA
Ta me chamando de superficial?
EUCLIDES
Não necessariamente.  Em alguns casos o filme era bom.
DULCINÉIA
Muita coisa aconteceu nesses cinco anos.  Inclusive me tornei Kardecista.
EUCLIDES
Sei... e quem te garante que o Deus real, esse que existe, não seja evangélico? Se for esse papo de kardecista vai queimar o seu filme. Um ex-ateu, pelo menos, não tava comprometido com nada.
DULCINÉIA
Os oportunistas nunca estão comprometidos com nada. Além dos próprios interesses. Acho que sei o que to fazendo aqui.
EUCLIDES
O quê?
DULCINÉIA
Acho que o Criador me trouxe pra eu te perdoar e você seguir pelo caminho dos espíritos de pouca luz...
     Euclides tem uma crise de riso.
EUCLIDES
Vai ver Jesus tava ocupado e te mandaram no lugar dele.  
DULCINÉIA
Vai brincando,palhaço... Que outro motivo seria?
EUCLIDES
Acho que o Criador te trouxe pra eu te perdoar e você seguir pelo caminho dos espíritos de pouca luz...    
DULCINÉIA
Faz-me rir.
EUCLIDES
Agora eu entendo porque a gente se separou.
DULCINÉIA
Isso é moleza. O duro é entender porque a gente se casou. Vamos recapitular, deve ter uma lógica por trás disso. Qual foi a última pessoa com quem falou?
EUCLIDES
A enfermeira. Ela apertou minha mão e disse: “Não se preocupe seu Euclides. Vai dar tudo certo.” Meia hora depois eu tava morto. Vaca do caramba!
DULCINÉIA
É sempre assim... Eu ouvi algo parecido.
EUCLIDES
Sério?! E o que foi que o piloto disse antes do avião cair?
DULCINÉIA (Embaraçada com a pergunta)
Como assim?
EUCLIDES
Você não morreu num acidente de avião?
DULCINÉIA
Ora... não vamos perder o foco! Voltemos ao ponto. O que estamos fazendo os dois aqui juntos? Depois de mortos?! Coisa que a gente nem fazia quando vivos?
EUCLIDES
Por favor, não se altere... Mas eu ainda acho que você veio me trazer o cigarro.  Dá uma olhadinha nos bolsos...
DULCINÉIA
Vá à merda Euclides!
EUCLIDES
Tá vendo como você é? Custa olhar?
    Entra o Diabo. Veste-se em tons de preto e vermelho.  Terno ou mesmo os paramentos de Juiz.  Ele tem um ar mais ‘superior’ do que ameaçador. Como um Juiz severo diante de pequenos marginais.  
DIABO
Senhora Dulcinéia, Senhor Euclides.
DULCINÉIA (Ficando de joelhos assustada)
É ele! Sim, senhor! (Puxa Euclides para ele se ajoelhar também) Estamos aqui, oh senhor! Humildemente aguardando suas palavras, agora que estamos as portas do seu reino... (Faz uma reverência, imitada com atraso por Euclides)
DIABO
A que ‘senhor’ está se referindo?
DULCINÉIA (Insegura)
Jesus?
DIABO
Não.
DULCINÉIA
São Pedro?
DIABO
Não.
DULCINÉIA
Santo Agostinho? São Marcos? Santo Antonio? São Lucas? Arcanjo Gabriel?
DIABO
Nenhum deles. Eu pediria que ficassem em pé. Aqui as Orações e quaisquer gestos de louvor são punidos severamente.
      Os dois se levantam e se abraçam assustados, compreendendo enfim que estão no inferno e falam com o diabo.
DULCINÉIA (Para Euclides)
Acho que a gente não ‘passou de ano’ Euclides.
EUCLIDES
Também acho... Será que tem recuperação ou fomos reprovados direto?
DIABO
Isso o tempo dirá, senhor Euclides. Creio que já descobriram onde estão e com quem estão falando?
     Os dois balançam a cabeça que sim assustados. Permanecem abraçados.
DIABO
Ótimo. Não dá para dizer: ‘sejam bem-vindos’, pois o fato de não o serem os trouxe até aqui. Mas a hospedagem é justa e merecida.
DULCINÉIA (Se soltando de Euclides)
Isso é um grande equívoco! Eu não devia estar aqui!
DIABO
Todos dizem isso. Assim que se recuperar do susto, o senhor Euclides dirá o mesmo.
DULCINÉIA
Mas no meu caso é pra valer! Houve um grande engano.   
DIABO
Aqui não se comete enganos senhora.
DULCINÉIA
Eu tenho certeza disso! Mas veja meu senhor... entendo o que vai dizer... (Aflita caçando as palavras certas.)...  Dirá que o sistema aqui é a prova de erros e jamais se engana. Ok! Concordo com o senhor. (Continua a aflição com as palavras que não veem) E imagino que jamais iria acreditar no contrário. (Finalmente parece achar o discurso certo) Mas não estou falando de um erro sistêmico gerado de dentro pra fora. Não! Me refiro a variáveis estocásticas surgidas de fora pra dentro. Gerando uma somatória de erros improváveis que sozinhos não produziriam nada, mas que se alinharam  e produziram uma singularidade. Compreende?
DIABO
Perfeitamente. É a chamada teoria do Caos.
DULCINÉIA
Ótimo! Estamos de acordo então. É dessa singularidade que estou falando e não de um erro sistêmico nesse... nesse estabelecimento que o senhor dirigi tão brilhantemente. Com tanta dedicação...
DIABO
Sim, senhora Dulcinéia.  Creio que é nesse ponto que irá expor o argumento definitivo. Que me convencerá de que a senhora é essa singularidade. Para em seguida deixar meus domínios e subir até as instâncias superiores. Acredite... vai ser difícil.
DULCINÉIA
Pelo contrário! Essa é a parte mais fácil.
DIABO
Sei... E que prova, que argumento seria esse?   
DULCINÉIA (Exultante. Tendo a causa como ganha)
ELE! (Aponta para Euclides)
DIABO
O senhor Euclides? É ele o seu argumento incontestável?
DULCINÉIA
Exatamente! (Euclides olha feio pra ela) A simples comparação entre as minhas ações e as dele já são prova suficiente. É como colocar o feio diante do belo, um exclui o outro.
EUCLIDES (Para Dulcinéia, irônico)
Obrigado Dulcinéia.  É sempre bom contar com você nos momentos difíceis...  
DULCINÉIA (Para Euclides)
Nada pessoal... (Para o Diabo) A minha conduta moral é muito superior a do Euclides, daí eu não posso, depois da morte, ter a mesma sorte que ele. Um levantamento, mesmo superficial, deixa isso claro como água. O senhor poderia me fazer essa gentileza? A presença de alguém superior num ambiente inferior pode causar um desequilíbrio no lugar. E desencadear novas variáveis estocásticas.
DIABO
Perfeitamente. A comparação pecado a pecado já está sendo feita senhora... (Ele se concentra)
DULCINÉIA (Para Euclides, conciliadora)
Não leve pro pessoal Euclides. Esse lugar é pra pessoas como você. Pra que purguem seus pecados, seus erros e retomem o caminho da luz, da virtude. (Aperta as mãos dele afetuosamente) Eu tenho certeza que um dia Euclides..., um dia você vai se reencontrar comigo nos planos superiores. La de cima vou orar muito por você...
DIABO
Pronto! Foi tudo medido e pesado senhora Dulcinéia.
DULCINÉIA (Feliz)
Que bom! Onde é a saída?
DIABO
Foi tudo medido e pesado.  Constatou-se que os dois são pecadores na mesma medida, cada um a seu modo. Daí estarem onde estão.
DULCINÉIA (Chocada)
O QUÊ?
DIABO
Isso que ouviu e creio que ouviu bem. A senhora não é uma meia grama sequer melhor que o senhor Euclides.
DULCINÉIA  
Pois eu exijo uma recontagem! Que métrica é essa que me iguala a um... um sacripanta! Adúltero! Que me chifrou com mais de mil mulheres diferentes?
DIABO
Não foram tantas assim. A única que poderia ter um peso maior, em termos de pecado cometido, foi sua irmã.
DULCINÉIA (Horrorizada)
Você teve um caso com a Bete ?
EUCLIDES
Não foi minha culpa! A culpa foi do ex-marido dela, o Olavo.  Encontrei com ele por acaso.  Falou misérias, disse que ela só prestava pra uma coisa...  Nessa coisa ela era rainha, não tinha pra ninguém. E o pior e que eu adoro essa coisa... não agüentei e fui conferir... Mas a culpa foi do Olavo. Ele que me instigou. Fui induzido ao erro.
DULCINÉIA
E o canalha ainda bota a culpa no outro canalha igual a ele! E essa ‘coisa’, seria o quê?
EUCLIDES
Prefiro não entrar em detalhes... Mas ela mandava bem demais...
DULCINÉIA (Para o Diabo,irada)
Isso não é justo! Eu não posso ter o mesmo destino que um canalha como esse!
DIABO
É mesmo? O apelido ‘Minha Cadelinha’ lhe é familiar?
DULCINÉIA (Abandona o ar belicoso e se encolhe toda. Ar matreiro de quem foi pego num delito)
E-eu?! Num sei... não...claro que não.
DIABO
Acha seguro mentir pra mim? Cuidado com o que diz dona Dulcinéia. Aqui cada palavra tem um preço. E é cobrada a vista. Conhece o apelido ‘minha cadelinha’?
DULCINÉIA (Envergonhada, mão no rosto, fala baixinho)
Sim...
DIABO
Mais alto.
DULCINÉIA
Sim.
DIABO
Mais alto!
DULCINÉIA
Sim!
DIABO
Senhor Euclides...
Euclides (Se antecipando a pergunta)
Nunca ouvi falar nisso! Nem sei do que estão falando.
DIABO
Não é essa a minha pergunta.  Senhor Euclides, o senhor se lembra de um certo Luiz Gustavo Rivera?
EUCLIDES
Claro que eu lembro. O Déco! Nossa... Amigo da vida toda. Desde moleque.  Empinamos muito pipa juntos... Mas... porque ,assim...tá perguntando? Que que tem a ver?... (Olha para Dulcinéia e entende enfim) Desgraçada! Isso não é cadelinha! É cachorra!
    Parte pra cima dela. Ela foge.
DULCINÉIA
Que moral tem pra falar de mim? Eu tava me sentindo sozinha, carente...
EUCLIDES
Comprasse um gato! ‘Tava sozinha, carente... ’ Pra mulher isso é sinônimo de  ‘Vou dar pro primeiro que aparecer’! Aliás..., falando em mulher ordinária (Lascivo, querendo vingança)... sabe como é que eu apelidei a sua irmã? ‘Boca nervosa!’ Essa era a ‘coisa’ que não quis te falar.  Menina...  Ela tem uma contorcionista russa no lugar da língua. E áspera... Parecia que o boquete tava sendo feito por um gato.  Eu me arrepiava todinho, arrepia só de lembrar.  (Ela ameaça bater nele, ele foge) No resto era o básico. E depois ainda tinha que agüentar as lamurias na saída do motel. “Eu não devia ter feito isso.” “A Dulcinéia não merece.”“ Jurei pra mim mesma que não viria mais... ”“ Se mamãe fica sabendo ela morre...” Chata! Deve ser de família isso. Pena que você não herdou a ‘língua bailarina’. DULCINÉIA
Pústula! Cafajeste! (Dá um tapa no braço dele. Ele se esquiva)
EUCLIDES
A sua mãe inclusive...
DULCINÉIA (Interrompendo Assustada)
Não... com a minha mãe não.... Minha mãe não!
EUCLIDES
Calma! Não quis dizer isso. Ia dizer que sua mãe ficou sabendo. Deu um rolo, veio tirar satisfações, me chamou de canalha e tudo.
DULCINÉIA
Você é um canalha! Seu canalha! E eu me sentia culpada toda vez que saia com o Déco...  
EUCLIDES
Claro! Devia infernizar ele também na saída do motel: “ Eu não devia ter feito isso.” “ O Euclides  não merece.” “ Jurei pra mim mesma que não viria mais...” “ Se o Euclides  fica sabendo ele morre...”. Mulher sem vergonha é tudo igual! O arrependimento é sempre na saída do motel. Nunca na entrada.
DULCINÉIA
Eu tava solitária!
EUCLIDES
Comprasse um gato! No máximo. Com mulher safada até cachorro é um risco.
DULCINÉIA (Horrorizada)
Seu degenerado, seu energúmeno!
DIABO
Vejo que já se entenderam. Podemos então dar procedimento aos trabalhos.
DULCINÉIA
Não, não, não! Por favor! As coisas não podem ser feitas assim, tenho direito de defesa.
DIABO
A senhora já fez isso. E com muitas palavras inclusive. Vocês não estão aqui para serem julgados, vocês estão aqui por serem culpados.
EUCLIDES
Mas meu senhor..., dentro da liturgia local, não teria alguma coisa que nos favorecesse de algum modo e abrandasse nossa pena? Tudo bem... não somos grande coisa, mas também não somos tão ruins assim.
DIABO
Sim tem.
DULCINÉIA
E que eu teria que fazer pra... abrandar a minha situação?
DIABO
Vocês já fizeram.   
DULCINÉIA/EUCLIDES
Já?
DIABO
Sim. Todos recém-chegados tem essa última oportunidade de provar serem possuidores de alguma virtude superior, de valores éticos internos. E com isso abrandar sua pena. De início os dois se saíram bem. Ao saberem com quem estavam falando, a primeira reação que tiveram foi se abraçarem. Buscaram refúgio um no outro. Na maioria dos casos as pessoas buscam refúgio ‘atrás’ do outro. Um usa o outro como escudo, depois ficam trocando de posição, numa espécie de dança das cadeiras sem cadeiras. Mas depois disso apenas um de vocês continuou, ainda que timidamente, pelo caminho da virtude, enquanto o outro se calou. Apenas esse tem alguma esperança, muito pouca é verdade, porém tem que ser considerada.
EUCLIDES (Revoltado, achando que ele que se deu mal)
Mas isso não é justo! Confesso que fiquei meio assustado com a situação, mas depois essa daí caiu numa verborragia. Não me deu chance! Por isso ela é mais ‘virtuosa’ do que eu?
DIABO
Não é dela que estou falando e sim do senhor. O senhor é que tem essa réstia de virtude.
DULCINÉIA (Revoltada)
Como é que é? Ainda tenho que ouvir um absurdo desses? Essa criatura a quem o senhor chama de ‘virtuosa’, mal arriscou algumas palavras! Ficou apalermado se borrando todo. Enquanto eu tomava a frente da situação, fazendo jus a tradicional covardia masculina! Aliás, o grande questionamento que ele fez hoje foi: “você trouxe o cigarro?” Mas já entendi tudo. O bom e velho sexismo ataca novamente! Que todas as religiões do mundo,sem exceção, são misóginas eu ja sabia, mas o Diabo?... Perdoe a franqueza, mas o senhor me decepciona. Cinco minutos na internet e as mulheres do mundo inteiro saberiam disso! Deviam começar uma greve. Se recusar a morrer enquanto uma injustiça dessas não fosse corrigida!
DIABO
A senhora é hábil com as palavras, dona Dulcinéia. Pena que essa habilidade pese contra a senhora.
DULCINÉIA
Como assim?
DIABO
Do abraço inicial que os redimia a senhora foi a primeira a se livrar. E tentou usar como prova de inocência, a necessária culpa do senhor Euclides. Seu discurso é sempre na primeira pessoa, “O que ‘eu’ teria que fazer pra abrandar a ‘minha’ situação?” Enquanto o discurso, sempre curto e modesto do senhor Euclides era “Não somos grande coisa, mas também não somos tão ruins assim.” Ele é o único a usar a pessoa verbal ‘nós’.  Ao contrário da senhora, ele ainda continua abraçado.
DULCINÉIA
Eu às vezes... as vezes eu me excedo um pouquinho...não meço bem as palavras...
DIABO
Mas é justamente aí que elas saem no tamanho real.  Sem serem aumentadas ou diminuídas.  Vocês são dois e dois são os lugares para onde podem ir.  Um deles preparem-se, é ruim. Mas o outro, acreditem, é muito pior.
       Euclides e Dulcinéia se encaram por um instante e se abraçam novamente.
DULCINÉIA
Eu to com medo Euclides!
EUCLIDES
Eu também...  Minha mãe bem que tentou me por no catecismo. Eu não quis! Quem sabe a minha vida tivesse tomado outro rumo. O catecismo era no mesmo horário das aulas de natação... e eu ia ficar sem ver as menininhas de biquíni ! Por isso que eu fiquei Ateu! Achei que Deus é um sujeito malvado que não deixa a gente fazer aula de natação.
DULCINÉIA
Euclides...Euclides...nesse lugar mais pior...deve ter barata Euclides! (Tem uma crise de choro)
EUCLIDES
Meu senhor... eu apelo aos seus bons sentimentos...
DIABO
E eu apelo ao seu raciocínio para não fazer apelos descabidos.  
DULCINÉIA (Chorosa, mal consegue falar)
Senhor... será que ...será que não podia facilitar um pouco as coi... (Chora) Desculpe... não consigo me controlar.
DIABO
Não precisa se envergonhar nem tentar controlar o choro, dona Dulcinéia. Aqui seu sofrimento será sempre apropriado e bem vindo.
     Ela tem uma crise de choro ainda maior.
DIABO
Creio que é chegada a hora de cada um ir ao lugar que lhe é devido.  
EUCLIDES
Então tudo acaba assim?  Tudo acontece por acaso sem o exercício da nossa vontade?
DIABO
Como já disse uma vez, aqui cada palavra tem seu preço e é cobrada a vista.  O senhor já conseguiu uma pequena vantagem. Posso  conceder  uma última prova. Que  pode fazer com que perca o pouco que tem ou elevá-lo ao purgatório. O mesmo vale para a dona Dulcinéia. Mas é um risco.  Tem uma infinidade de andares mais abaixo e que vão ficando cada vez piores. Querem arriscar?
OS DOIS
Queremos!
DIABO
Pois muito bem. É um teste muito simples. Até banal. Dona Dulcinéia... para onde o senhor Euclides merece ir?
DULCINÉIA (Confusa)
Acho que o senhor se confundiu. Está querendo perguntar para onde eu devo ir.
DIABO
Não.  Foi isso mesmo que eu disse: para onde o senhor Euclides deve ir?  Pergunta mais fácil que essa é impossível.  Há segundos atrás era taxativa em afirmar que ele devia descer aos infernos e a senhora ascender aos céus.
EUCLIDES (Revoltado)
Pêra aí! Que negócio é esse? A corda vai direto pro meu pescoço?
DIABO
Tinha uma pequena vantagem e resolveu arriscar. Com isso colocou o próprio destino nas mãos da senhora Dulcinéia. O jogo é pelas minhas regras.  Podia ter ficado com o que tinha...
EUCLIDES
Meu senhor... por caridade...já que está tudo perdido. Me permita um último cigarro. Melhor... um último maço. Pelo que me espera na eternidade eu creio que não seja pedir muito...
DIABO
Desculpe mas não é permitido fumar aqui.
EUCLIDES (Horrorizado)
O QUÊ? Não é permitido fumar aqui?! Se aqui não pode fumar, onde vai poder?
DIABO
A súplica ‘por caridade’ também é mal vista no local. Soa ofensivo. Dona Dulcinéia... Não estou ouvindo sua voz. O que não é muito comum. Não vai recorrer às variáveis estocásticas ?  Quer tentar as Cadeias de Markov ou o Movimento browniano ?
DULCINÉIA (Aflita)
O senhor não pode fazer isso...
DIABO
Mas eu não fiz nada, quem vai fazer é a senhora. Uma coisa tão simples, a senhora foi taxativa em afirmar ser merecedora de um lugar melhor. É só dizer: eu mereço o purgatório e o Euclides os baixos círculos infernais. Pronto! Mas vou lhe ajudar... Tente imaginar o seu Euclides se deleitando com o sexo oral praticado pela sua irmã. Essa visão com certeza vai lhe inspirar e tornar a decisão mais fácil.
Dulcinéia  olha aflita e penalizada para Euclides.
EUCLIDES (Indo até ela decidido)
Ambos sabemos o que vai fazer. Então faz logo! Assim acaba com esse martírio e eu posso fumar o meu cigarro.
DIABO
Aqui não é permitido fumar senhor Euclides. Já lhe disse.
EUCLIDES
Mas pra onde eu vou é! Ou não é?
DIABO
Sim é.
EUCLIDES
Pois então...
DIABO
O senhor trouxe cigarro?
EUCLIDES
Como assim?
DIABO
Lá não tem.
EUCLIDES
Pois eu vou pegar as baratas da Dulcinéia botar fogo na cabeça delas e puxar a fumaça pela bunda! Claro... isso se tiver fogo lá embaixo. Se não for proibido pelo corpo de bombeiros.
DIABO
Tem fogo sim senhor Euclides, pode ficar tranqüilo. E então dona Dulcinéia? O seu silêncio chega a ser constrangedor. Confesso estar sentindo falta do som da sua voz.
DULCINÉIA (Indo até Euclides, acaricia seu cabelo, ar comovido)
O que deu errado com a gente Euclides?
EUCLIDES
Tudo! Não tá vendo onde viemos parar? Deu errado com a gente e com a gente e os outros que ficaram com a gente.
DULCINÉIA
Eu to com medo Euclides... ele disse que tem barata lá.
EUCLIDES
Pode deixar. Eu vou fumar uma por uma.
DIABO
Só uma correção: eu não disse que tem barata lá embaixo.
DULCINÉIA (Aliviada)
Não tem?
DIABO
Tem. Mas eu não cheguei a dizer que tinha. A senhora supôs acertadamente. O que não chega a ser problema pro senhor Euclides, que vai incluí-las na sua dieta.
EUCLIDES
Eu não vou comer, só vou fumar.
DIABO
Que seja. O seu tempo se esgotou dona Dulcinéia. Para onde o senhor Euclides deve ir?
DULCINÉIA (Aflita)
Diz alguma coisa Euclides! Me ajuda! Que não seja algo relacionado a cigarro, por favor!
EUCLIDES
Todos sabem o que vai fazer. E nem há outra coisa a fazer... Acaba logo com isso. Eu vim parar aqui por culpa própria, por uma dieta inadequada, como você diz. E você, por um azar incrível, por um acidente de avião. É menos culpada do que eu.
DIABO
Acidente de avião?! Dona Dulcinéia morreu ao contrair infecção hospitalar num implante de silicone. Quadro grave. Teve uma parada cardíaca e respiratória durante a operação.
EUCLIDES (Achando graça)
O que? Eu não acredito. (Ri)
DULCINÉIA (Para o Diabo)
Nós sabemos muito bem que o senhor tudo sabe! Mas não podia fingir não saber de vez em quando? Nós os humanos nos entendemos assim, um finge que fala a verdade e outro finge que acredita. A isso nós chamamos “humana compreensão”.  (Para Euclides, vendo que ele ainda ri) Quer parar? Quer parar?
EUCLIDES
Bem que eu tava achando essa estória de avião esquisita... (Olhando para os peitos dela) E o pior é que não aumentou nada. Pra mim continua pequeno.
DULCINÉIA
Eles não chegaram a colocar imbecil!
EUCLIDES
Ué?! Por que não?
DULCINÉIA
Eu morri, lembra?
EUCLIDES
Mas que falta de consideração. Você deu a vida por eles. Custava terem colocado? Iam dar um volume bonito com você deitada no caixão.  (Ri)
DULCINÉIA
E eu com o coração dilacerado por tua causa. Seu cafajeste. Cadê aquele menino que conheci na adolescência? Que fim levou? Quando jovens os homens parecem ursinhos... depois eles ficam velhos...e ficam parecendo ursos. Na certa esqueceu nosso  primeiro beijo. Na pracinha.
EUCLIDES
Como é que eu podia esquecer. Você me bateu!
DULCINÉIA
Claro! Você passou a mão na minha bunda!
EUCLIDES
Mas depois do beijo eu achei que a gente tava namorando
DULCINÉIA
E tava! E isso te dava o direito de passar a mão na minha bunda?
EUCLIDES
Claro! Se não for assim, pra quê namorar?Ta vendo como você é? 
DULCINÉIA
Eu te dei a minha mocidade... a minha virgindade...
DIABO
É nesse ponto que eu devo fingir não saber?
DULCINÉIA
Exatamente!
EUCLIDES
A gente cobra tudo do outro.  Mas nunca oferece nada.  Vai ver é por isso que estamos aqui...
DIABO
O tempo acabou...
DULCINÉIA
Espera!
       Dulcinéia caça afoita alguma coisa nos bolsos. Fica aflita por não encontrar nada.
DULCINÉIA
Droga! Droga! Droga!
EUCLIDES (Sem entender)
O que sê ta procurando?
DULCINÉIA
Cigarro... Num tem Euclides... Desculpa...
EUCLIDES
Deixa isso pra lá...
DULCINÉIA (Para o Diabo, revoltada)
Custava? Custava? Até um condenado tem direito a um último cigarro!
EUCLIDES (Conciliador)
Eu sou um condenado, lembra?
DULCINÉIA
Então os putos tem que te dar um último cigarro!
EUCLIDES
Não seja ingrata. Passou a vida me mandando ir pro inferno, te deram a chance de fazer isso de verdade.
DULCINEIA (Aflita)
Não tem graça. 
DIABO
Seu tempo acabou dona Dulcinéia. Tanto reclamou das variáveis estocásticas, que nada mais são do que um jogar de dados sem nenhum controle sobre o número que vai sair. Pois bem, o resultado de suas ações são  fartamente conhecidos e não vão surpreender ninguém. A senhora venceu. Então diga... Pra onde o senhor Euclides deve ir?
EUCLIDES
Foi bom te ver...
DULCINÉIA (Após breve hesitação)
Para onde eu for...
EUCLIDES (Surpreso)
Se ta falando sério?
DIABO
Vejo que resolveu  dar mais uma chance as variáveis estocásticas.  Mas sobre elas não se tem controle. Mais uma vez um de vocês abre mão da vantagem que tem. Pois que seja... (O Diabo se concentra )
EUCLIDES
Não devia ter feito isso!
DULCINÉIA
Me escuta Euclides, me escuta. Sabe aquela coisa que se diz na igreja durante o casamento? De amar e respeitar, na alegria  e na tristeza, na saúde e  na doença, prometendo ficar juntos para todo o sempre?
EUCLIDES
Sei...
DULCINEIA
Pois e... É tudo bobagem! É um monte de palavrório artificial e vazio que não serve pra merda nenhuma! Aqui sim e pra valer. Aqui o prometer ficar junto e cuidar um do outro é a sério.  Não tem um padre robótico nem convidados entediados, ansiosos pela bebida e comida farta. Você promete?
EUCLIDES (Segurando as mãos dela)  
Dulcinéia ...eu Euclides prometo cuidar de você e ficar junto para todo o sempre até que a morte...
DULCINEIA (Interrompendo)
Essa parte já passou Euclides...ficou pra trás...
EUCLIDES
Ah é! Desculpa. Dulcinéia ...eu Euclides  prometo cuidar de você para todo sempre, na ale...na tristeza e em tudo mais que surgir a nossa frente. Agora você.
DULCINÉIA
Euclides ...eu Dulcinéia prometo cuidar de você para todo sempre, na tristeza e em tudo mais que surgir a nossa frente. Essa vai ser nossa segunda união.
EUCLIDES
Não. Essa é a primeira.
       Os dois se abraçam.
DIABO
Uma cena comovente... e portanto inapropriada no local. Tenho a resposta... que por sinal é muito triste.
       Os dois se assustam.
DIABO
Infelizmente... não vou poder desfrutar da companhia dos dois. É uma pena... Confesso que despertaram a minha simpatia e teria enorme prazer em atormentá-los por toda eternidade.  Mas infelizmente foram elevados ao Purgatório. É uma pena... Uma escada acaba de se formar ao fundo. Ela parecerá infinita, mas não é. No topo, está o purgatório.  Adeus...
       Luz sobre o Diabo vai diminuindo a medida que ele se afasta. Diabo sai.
DULCINÉIA (Exultante de felicidade)
Conseguimos Euclides !! Nossa... Podia até dizer que é um milagre , mas isso não deve acontecer por aqui. (Aponta) Olha ali a escada.
       Ela o puxa para seguirem para a escada mas Euclides a segura.
EUCLIDES
Espera... Precisamos consumar nossa união. O noivo ainda não beijou a noiva...
       Os dois se beijam longamente. Música romântica ao fundo. Luz diminui até o blecaute.
Fim. 

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