O FLAGRANTE







REGISTRO:  11997

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BRASIL
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PORTUGAL

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O FLAGRANTE



PERSONAGENS:


DELEGADO PAIXÃO
INSPETOR DELMIRO
ÍSIS
LEOPOLDO (MARIDO DE ÍSIS)
ANTONIO CARLOS (AMANTE)
MARIA AUXILIADORA
PASTOR SILAS


      Delegacia.  Sala do Delegado Paixão.  Ele está sentado em sua cadeira folheando uma pasta atentamente. Olha ao redor desconfiado para verificar se não tem alguém olhando. Tira uma revista pornô de dentro da pasta.  Observa extasiado.  Vira na vertical, olha as fotos. Fica admirado com o que vê.  Entram Inspetor Delmiro, Ísis, Antonio Carlos e Maria Auxiliadora.  Ao vê-los ele esconde a revista na pasta. Eles entram com grande alarde.
ÍSIS (Para o inspetor Delmiro)
Isso é um absurdo! Nunca botei os pés numa delegacia! Essa mulher é louca!  (Refere-se à Maria Auxiliadora)
ANTONIO CARLOS (Tom aflito e conciliador)
Calma Ísis! Assim piora as coisas. (Para o Inspetor Delmiro) Foi um grande engano meu senhor... Pra que levar adiante?
DELEGADO PAIXÃO
Que isso Delmiro?  Briga de trânsito de novo?   
DELMIRO
Flagrante doutor.  
ANTONIO CARLOS (Para o delegado, aflito).
Um grande mal entendido Doutor... (Lê o nome na mesa) Doutor Paixão?
DELEGADO PAIXÃO
Exatamente.
ANTONIO CARLOS
Pois então, delegado Paixão.  Foi um mal entendido, dona Ísis tá um pouco nervosa... Bobagem... Pra que trazer isso pra delegacia? Tomar seu tempo ...
MARIA AUXILIADORA
Não sou louca não senhor! Imagine... Uma sem-vergonhice dessas no meio da rua.  Pra todo mundo ver!
ÍSIS
Louca! Essa mulher tá louca! Ninguém vai ouvir essa doida , vai?  Meu Deus do céu... numa delegacia...numa delegacia...
DELEGADO PAIXÃO
Sem alteração minha senhora.  Sê prendeu quem Delmiro?
DELMIRO
O casal! Esses dois.
DELEGADO PAIXÃO
A senhora quem é?
DELMIRO
Foi ela que deu queixa.  (Lendo um papel) Dona Maria Auxiliadora.  Os outros dois são (Lendo) Senhora Ísis Vila Real de Almeida Medeiros Fontes e o senhor Antonio Carlos Valentin. (Entrega o papel com os dados ao delegado)
DELEGADO PAIXÃO
Sei...  qual o delito?
DELMIRO
Ato obsceno em local público.  
ÍSIS
Mentira!(Para mulher) Louca! Você é louca! (Para o delegado) A gente tava conversando no carro. Só isso.
ANTONIO CARLOS (Pega um cartão e entrega ao delegado)
Dona Ísis e seu marido são clientes meus. Tenho uma cópia do contrato aqui. (Entrega a ele também)
DELEGADO PAIXÃO (Lendo o cartão e vendo o contrato)
‘ A&C Hidráulica, Detecção de vazamentos, desentupimento de pias, vasos, ralos, tanques, caixas de esgoto, de gordura e pluvial, sem quebrar nada. ’ Sei... E onde dona Maria Auxiliadora entra nisso Delmiro?
DELMIRO
Ela flagrou dona Ísis fazendo sexo oral no seu Antonio Carlos.
ÍSIS (Se exalta Antonio Carlos a segura)
Mentira! Doida! Louca! A gente tava conversando !
DELEGADO PAIXÃO
O que a senhora viu exatamente, dona Maria?
MARIA AUXILIADORA
Não tenho palavras pra tamanha abominação.
DELEGADO PAIXÃO
Pois eu pediria que encontrasse algumas. Estamos numa delegacia e a senhora tá fazendo uma denúncia. Caso não consiga, dona Ísis pode processá-la por crime contra a honra. No caso: difamação.
MARIA AUXILIADORA
Eu sou uma mulher de Deus, de Jesus, delegado. Não vou ficar descrevendo uma... uma abominação dessas!
DELEGADO PAIXÃO (Faz sinal para Ísis se calar assim que ela ameaça dizer alguma coisa)
Vou ajudá-la então. Por favor, se acalme. Não precisa ter vergonha de nada. O senhor Antonio Carlos aqui presente, dono da A&C Hidráulica e etc..., encontrava-se em seu veículo com o seu membro, seu ‘abominável’ de fora?
MARIA AUXILIADORA
Exatamente.
DOUTOR PAIXÃO
Sei... E ao vê-lo com o ‘abominável’ de fora, qual foi a reação de dona Ísis?
MARIA AUXILIADORA
Abocanhou ele! Engoliu inteiro! Achei que fosse engolir o homem todo começando por ali!  
ÍSIS
MENTIRA!
DOUTOR PAIXÃO
Sem alteração! Senão vou metê-la na cadeia por desacato.
ANTONIO CARLOS
Isso não vai mais acontecer, delegado. Calma Ísis. Não piore as coisas... Pelo amor de Deus Ísis!
DELEGADO PAIXÃO
E então dona Maria... Voltando ao ponto... Não pode ter se enganado? Ilusão de ótica talvez. Ainda mais quando tudo é muito rápido.
MARIA AUXILIADORA
Rápido?! Ficaram lá quase vinte minutos. Só pararam quando a polícia chegou.
DELEGADO PAIXÃO (Espantado)
Como é que é? É isso mesmo Delmiro? Sê viu alguma coisa?
DELMIRO
Não deu pra ver nada, o vidro do carro é escuro. Eu chamei e eles abriram a porta.
DELEGADO PAIXÃO
Viu algo estranho?
DELMIRO
Bom... o seu Antonio Carlos tava meio pálido e a dona Ísis meio sem fôlego.  
DELEGADO PAIXÃO
Que mais?
DELMIRO
Mais nada. Só isso.
DELEGADO PAIXÃO
Tudo bem Delmiro, toma conta da recepção. Eu cuido do caso.
DELMIRO
Tá certo doutor. (Delmiro sai)
ÍSIS
Tá vendo delegado? Ela tá mentindo. O carro tava  num beco escuro e o vidro é fumê. (Astuta) Não acha estranho essa louca ver tanto coisa?
DELEGADO PAIXÃO (Delegado Paixão é sempre cínico e lascivo, sente prazer no apuro de dona Ísis e em torná-lo cada vez maior)
Estranho é uma mulher ‘casada’ num beco escuro com o encanador... Deve ter uma explicação pra isso também.      
ÍSIS (Desconcertada)
Ora... era...era um lugar como outro qualquer. Por quê? É crime parar num beco? É contra a lei?
DELEGADO PAIXÃO
Claro que não... fazer um boquete num beco é que é.
ANTONIO CARLOS
Que isso delegado? Assim me deixa numa situação difícil com dona Ísis. Uma cliente de grande estima.
DELEGADO PAIXÃO (Cínico)
Acredito! Aliás... ouvindo o senhor chego a querer mudar de ramo. Pra ter uma cliente assim... tão seleta. Deve ser por isso que quando fala com ela o senhor a chama de ‘Ísis’ e quanto fala dela a trata por ‘Dona Ísis’.  Mas voltemos ao ponto. Dona Ísis... a senhora chupou o encanador no beco da Dona Maria Auxiliadora?  
ÍSIS
Claro que não! Pelo amor de Deus, delegado... Essa mulher inventou isso.
DELEGADO PAIXÃO
Sei... dona Maria Auxiliadora...como a senhora viu isso sendo o vidro do carro escuro? A senhora tem visão de raio X?
MARIA AUXILIADORA
O primeiro a ver não fui eu. Eu só ouvi.  Quem viu primeiro foi o Antonino.
DELEGADO PAIXÃO
Ouviu?! Como assim, ouviu?! E quem é Antonino ?
MARIA AUXILIADORA
É filho de uma obreira, a dona Franciléia. Ela é mãe dele e do Luvanor, que o pastor Silas curou  das drogas. Até Crack ele fumava! O  pastor Silas é  ungido pelo poder de Deus...
DELEGADO PAIXÃO
Não vamos fugir do assunto. A senhora ouviu o quê e aonde?
MARIA AUXILIADORA
Foi no culto. A igreja fica ao lado do beco. O Pastor Silas tava pregando a palavra.  Quando ele dava uma pausa a gente ouvia um barulho vindo de lá. Mais ou menos assim (O som que ela faz é o que se produz encostando a língua no céu da boca e estalando. Chamarei de “stlam”); ‘Stlam, stlam, stlam, stlam... Quando o pastor falava não se ouvia. Mas era ele parar pra começar: stlam...stlam...stlam...stlam... O pastor   mandou ver o que era.
DELEGADO PAIXÃO
Aí a senhora foi lá fora e deu o flagrante?
MARIA AUXILIADORA
Não.  Eu sô sai da igreja na hora que a polícia chegou.
ÍSIS
Tá vendo delegado? A louca! Nem lá ela foi. Vai ver adivinhou...
MARIA AUXILIADORA (Ar sério, devoto)
Moça... sê deve estar com uma coisa muito ruim  em você.  Um espírito imundo  te fazendo agir assim... quenem mulher de rua.
ÍSIS (Furiosa)
Mulher de rua é a sua mãe!
DELEGADO PAIXÃO
Sem alteração! Sem alteração!
MARIA AUXILIADORA
Precisa conhecer urgente o pastor Silas. Ele vai te libertar minha filha...
DELEGADO PAIXÃO
Dona Maria, por favor! Desenrola logo. A senhora denunciou alguém por algo que não viu? Quer ser processada ?
MARIA AUXILIADORA
Mas doutor, eu mandei o Antonino ver o que era.
DELEGADO PAIXÃO
E o garoto, com sua visão de raio X, viu dentro do  carro?
MARIA AUXILIADORA
Não mandei ir lá fora. Mandei olhar da janela no segundo andar.
DELEGADO PAIXÃO (Cínico)
Agora melhorou... Ele olhou pelo teto do carro com sua visão de raio X ? Se não me engano tem um personagem do X-MEN que faz isso também.
MARIA AUXILIADORA
Não doutor. O carro tem teto solar. E tava aberto!
    Ísis olha assustada para Antonio Carlos que se assusta também.
ÍSIS (Para Antonio Carlos constrangida e envergonhada)
Antonio... você deixou o teto solar aberto? Antonio... pelo amor de Deus Antonio...
ANTONIO (Constrangido e aflito)
Claro que não! Eu sô abro o teto solar quando desligo o ar condicionado. E eu sô desligo quando o carro para... Me lembro bem.... eu parei o carro e ... (Lembra, ar aflito) Aí meu Deus...
ÍSIS (Se encolhendo de vergonha)
Eu te mato Antonio... eu te mato...eu juro que eu te mato...
DELEGADO PAIXÃO
Tá aí uma frase ruim de se dizer numa delegacia... E depois dona Maria? O garoto flagrou nossos ‘heróis’ e fez o que?
DONA MARIA
O pior foi isso, doutor. Ele não fez nada.  Chegou pra mim assustado e disse: ‘A mulher tá engolindo a salsicha do homem!’ Eu até ralhei com ele: ’ Mas e o barulho Antonino? O que é?’ É a mulher com a salsicha, ele falou. Eu não entendi nada! Tem um senhor que vende cachorro quente. Achei que essa mulher tava comendo  e fazendo barulho. Deixei pra lá. O barulho continuou. Disse pro pastor que não era nada. Ele tava pregando uma mensagem tão bonita doutor. Sobre Abraão no Egito e como ele entregou a própria mulher ao faraó pra gloria de Deus...
DELEGADO PAIXÃO
Voltemos dona Maria. Voltemos. Se ficou tudo ok, porque chamou a polícia?
ÍSIS (Aflita)
Delegado, por favor... reconheço que me exaltei, inclusive peço desculpas a todos. O Antonio, o seu Antonio Carlos, tem razão. Não tem cabimento tomar seu tempo com um mal entendimento bobo.  
ANTONIO CARLOS
Pois é... bobagem. Foi um dia ruim, mas nada que uma boa noite de sono não cure.
DELEGADO PAIXÃO
Grande verdade senhor Antonio Carlos. Grande verdade. Fico feliz que essa noite de sono vai ser na minha companhia, pois estão presos por Ato Obsceno em local publico.
ÍSIS (Aflita)
Pelo amor de Deus delegado, eu não posso ser presa!
DELEGADO PAIXÃO
O que a senhora não podia era fazer sexo oral em via pública. Ser presa por isso a senhora pode sim. 
ÍSIS
Mas a dona Maria não vai levar isso adiante, não é dona Maria? Por caridade... Eu sou uma mulher casada!
MARIA AUXILIADORA
Olhe... Por mim tá tudo bem...
ÍSIS (Aliviada)
Tá vendo delegado? Não há crime sem vítima.
MARIA AUXILIADORA
Precisa ver com o pastor Silas.
ÍSIS / ANTONIO CARLOS
Pastor Silas?
MARIA AUXILIADORA
Foi ele quem mandou fazer a denúncia. Tava ocupado na igreja.
DELEGADO PAIXÃO
Pois é. Voltamos ao ponto. Porque chamaram a polícia? Não  disse que tava tudo bem? Que só o Antonino viu a cena pouco enaltecedora de dona Ísis chupando o encanador.
ÍSIS
O senhor podia ser mais delicado ao falar do ...do... do ocorrido?
ANTONIO CARLOS
E eu não sou encanador. Sou engenheiro hidráulico.
DELEGADO PAIXÃO
Desculpe se feri a sensibilidade de vocês. Reformulando... Me referi a cena pouco enaltecedora de dona Ísis aplicando um flange cego no encanamento de nosso engenheiro hidráulico.  
MARIA AUXILIADORA
Bom... de uma hora pra outra a criançada da igreja sumiu. Não ficou um. Tava todo mundo na janela.
ÍSIS
Eu vou me matar... que vergonha meu Deus...eu quero morrer Antonio...
DELEGADO PAIXÃO
Não diga bobagens dona Ísis. Uma mulher forte como a senhora... Vai se recuperar depois de sair  da cadeia.
     Ela tem uma crise de choro, Antonio a ampara.
ANTONIO CARLOS
Eu sou casado doutor! Como minha mulher vai receber isso?
DELEGADO PAIXÃO
Muito mal, Seu Antonio Carlos. Pessimamente, eu diria. Prepare-se pro pior. Ela vai te esfolar no divórcio. (Pega o contrato que Antonio Carlos lhe deu) Leopoldo Medeiros Fontes é o marido da senhora?
ÍSIS
Sim ... ele não pode ficar sabendo disso... ele é cardíaco..
DELEGADO (Olhando o papel e discando o telefone)
E corno...  (Atendem) Alô é o senhor Leopoldo quem tá falando? ( ... ) Muito prazer, delegado Paixão da 25 DP, seu criado...
   Ísis corre e tira o telefone das mãos dele.
ÍSIS (Ao telefone)
Leo sê não imagina! To na delegacia, bati o carro! (...) Não. Bobagem.  Amassadinho de nada ,coisa besta. ( ... )Não precisa! Não precisa! (...) Meia hora e eu to em casa (...) Bobagem, o delegado ligou pra conferir os dados.  Já tá tudo certo com o seguro. Batidinha de nada. Viu Leo... To pensando em passar uns dias na casa da minha tia Palmira. (...) Não, to pensando em ir direto daqui, melhor, nem vou passar em casa. Nossa... deu uma saudade dela (...) Fica tranquilo,  eu  te ligo de lá.  Outro dia sonhei com a tia Palmira. Me deu uma angústia na hora, um aperto no coração, to achando que ela tá precisando de mim, algum problema de saúde. (...) Mas eu sempre tive essa sensibilidade, essa mediunidade, eu que não desenvolvi. Minha mãe chegou a sonhar que o tio Claudio ia morrer. É de família. A gente não deve brincar com essas coisas. (...) Fica tranquilo, eu te ligo,eu te ligo. Devo ficar fora uns dias... (...) Também te amo. Um beijo. (Desliga)
DELEGADO PAIXÃO
A senhora acha que vai muito longe com essa farsa?
ÍSIS
Pelo amor de Deus delegado! Vamos resolver entre nós! Serão duas famílias destruídas!
DELEGADO PAIXÃO
Podia ser pior dona Ísis...
ÍSIS
Pior como?
DELEGADO PAIXÃO
Podia ser comigo.  Mas continue dona Maria. A senhora foi verificar o sumiço da criançada e deu com a gurizada babando no peitoril da janela?
MARIA AUXILIADORA
Não. O Pastor Silas me chamou pra  embalar as toalhinhas sagradas de Israel. Uma campanha muito bonita da Igreja, sabe Doutor. Cada toalhinha custa cem reais. O senhor não gostaria de colaborar?
DELEGADO PAIXÃO
Minha senhora, por favor!
MARIA AUXILIADORA
Pois então... A gente tava tão distraído embalando as toalhinhas. Não tinha mais ninguém no andar de baixo da igreja. Tava todo mundo no andar de cima, na janela.
    Ísis tem uma vertigem, Antonio Carlos a ampara.
ANTONIO CARLOS
Ísis! Ísis! Ela tá passando mal.
DELEGADO PAIXÃO (Totalmente alheio ao mal estar dela)
Dá uns tapas na cara  que ela volta. Essa mulher tem uma saúde de ferro. E um fôlego extraordinário.
MARIA AUXILIADORA
Deve ser uma entidade , alguma pomba-gira.
ANTONIO CARLOS
O senhor não sente compaixão pelo que estamos passando ?
DELEGADO
Na verdade eu sinto até uma certa inveja pelo que o senhor passou a  meia hora atrás.
MARIA AUXILIADORA
É pomba-gira doutor! Igual a irmã Marluce , até garota de programa ela foi. O Pastor Silas levou três dias e três noites pra libertar ela.  Ela gritou, se rasgou toda. Chegou a ficar nua em pêlo, o senhor acredita?
DELEGADO PAIXÃO
Claro que acredito. Pelo histórico dessa sua igreja  fico tentado a conhecer o culto.
MARIA AUXILIADORA
O senhor vai adorar doutor. Não quer comprar uma toalhinha sagrada de Israel? São só cem reais.
DELEGADO PAIXÃO
Outra hora, dona Maria. Outra hora.
ANTONIO CARLOS (Ar matreiro, após Isis se recompor)
Doutor Paixão... será que a gente não podia...não podia ter uma conversa em particular...mais sossegada? Só nós dois?
DELEGADO PAIXÃO
Melhor não, senhor Antonio Carlos. O senhor pode ficar tentado a me oferecer uma ‘cervejinha’ e eu posso ficar tentado a lhe oferecer uma ‘massagem’.
        Entra Delmiro acompanhado pelo Pastor Silas. O Pastor Silas fala com a entoação característica e padrão dos pastores evangélicos. Seus diálogos são sempre em tom de pregação e usando termos rebuscados e passagens bíblicas, o que requer cuidado com a dicção.
DELMIRO
Dá licença doutor. Esse é o pastor Silas.
MARIA AUXILIADORA
Graças a Deus o senhor chegou pastor.
DELEGADO PAIXÃO
Delegado Paixão, seu criado.
PASTOR SILAS
Vim o mais rápido que pude. Desculpe a demora Delegado. Um pastor não pode descuidar das ovelhas, senão o rebanho se perde. Feito aquela mulher   entregue ao pecado ao lado da casa que prega a virtude. “E os dez chifres que viste na besta são os que odiarão a prostituta, e a colocarão desolada e nua, e comerão a sua carne, e a queimarão no fogo. “Apocalipse 17:16 .
DONA MARIA AUXILIADORA
A mulher é essa aqui. (Aponta para Ísis).
PASTOR SILAS
Essa? Pensei que fosse mais alta.   
ANTONIO CARLOS (Indo ao pastor aflito)
Pastor pelo amor de Deus! O senhor tem que retirar a queixa! Serão duas famílias arruinadas. Minha mulher  me mata! Ela toma remédio controlado!
PASTOR SILAS
Ruína maior causaram vocês aos olhos dos inocentes.
ÍSIS
Tenha piedade! A gente paga quanto o senhor quiser.
DELEGADO PAIXÃO
Tá aí outra coisa ruim de se dizer numa delegacia. Vai   corrompe-lo nas minhas barbas, dona Ísis?
ÍSIS
É uma reparação! Só isso! Pra  me redimir... Sou uma mulher casada, Pastor Silas! 
MARIA AUXILIADORA
Ela tá com um espírito imundo Pastor. Uma pomba-gira!
       Ísis ameaça partir pra cima dela, Antonio Carlos a detém.
ANTONIO CARLOS
Dona Maria tem razão.
ÍSIS
O que?
ANTONIO CARLOS ( Puxando para perto de si, fala para ela )
Não retruca! Não vou pagar  pensão e morar atrás duma pastelaria!
ÍSIS
Qual o plano? Eu incorporar uma pomba-gira?
ANTONIO CARLOS
Agora não. Só na hora que eu mandar. (Para o Pastor Silas, dramático) Foi Deus que mandou o senhor aqui! (Beija as mãos do Pastor) Um espírito imundo se apoderou de dona Ísis! E eu não resisti, fui fraco...  (Se emociona) Não precisamos das mãos do delegado e sim das suas Pastor. Não é Ísis? (Ísis vacila, ele grita) ÍSIS!
ÍSIS (Vindo beijar as mãos do pastor também)
Foi Deus que mandou o senhor! Eu to ouvindo vozes. Vendo vultos.
DELEGADO PAIXÃO
Mas não é possível! Aqui não é lugar de exorcismo. Decidam se vão levar a denúncia adiante.  (Senta-se na sua cadeira irritado)
MARIA AXILIADORA
O delegado tem razão Pastor. Imagine se o espírito se manifesta e ela  fica nua em pêlo na frente dele?
DELEGADO PAIXÃO (Levantando novamente afoito)
Por outro lado a  liberdade religiosa é protegida por lei. O senhor faça o procedimento necessário que eu e o  Delmiro ficamos de prontidão.
DELMIRO
Mas Doutor...
DOUTOR PAIXÃO
Nem uma palavra Delmiro. Tá tudo tranquilo lá fora?
DELMIRO
Tá sim senhor.
PASTOR SILAS.
O senhor tem suas obrigações doutor e eu não posso fugir das minhas. “Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; também me convém agregar estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho e um Pastor.” João 10:16 . Dona Maria me passe uma toalhinha sagrada de Israel.
        Maria Auxiliadora pega na bolsa e entrega a ele. O Delegado senta novamente na cadeira, ar satisfeito, como quem vai assistir a um filme.
PASTOR SILAS
Dona Ísis ajoelhe aqui na minha frente. Eu vou te libertar. 
      Coloca a toalhinha na cabeça de Ísis. Um paninho retangular e muito fino, quase transparente, visivelmente de material precário e de má qualidade. Ísis fica de frente para plateia e de costas para o pastor.
DELMIRO
Não sei não doutor... tenho um pouco de medo dessas coisas.
DELEGADO PAIXÃO
Não seja frouxo. E não fica na frente na hora dela rasgar a roupa.
PASTOR SILAS (Concentrado, mão sobre a cabeça dela)
Senhor... Guia minha mão agora!  Ilumine com sua gloria este seu servo e faça dele sua espada e seu cajado! Esta mulher senhor... Esta mulher mergulhada na concupiscência e na prostituição... (Ísis olha aflita para Antonio Carlos, ele faz sinal pra ela aguentar) Esta mulher decaída... Esta mulher que faz do próprio corpo um local público , tal qual uma cadela no cio  coberta sem ordem nem critério por uma matilha de cães sarnentos...
       Ísis ameaça levantar, Antonio Carlos a segura.
PASTOR SILAS (Para Antonio Carlos)
Não chegue perto! Demônios se manifestam com violência. Podem até lhe quebrar um braço.
ANTONIO CARLOS
Estou só amparando, ela teve uma vertigem. (Para ela) Aguenta! Aguenta!
ÍSIS
Cadela! Ele me chamou de cadela!
ANTONIO CARLOS
Fica quieta!
PASTOR SILAS
O senhor, por favor se afaste, tá atrapalhando a oração.
ANTONIO CARLOS
Ta certo pastor. Tá certo.  
PASTOR SILAS (Retomando)
Esta mulher senhor... Esta mulher frequentadora de lupanares e casas de tolerância, é uma sobrevivente esquecida da destruição de Sodoma e Gomorra. (Ísis faz cara de choro.)  Enquanto o pastor ministrava a palavra, esta mulher fazia da própria boca a latrina onde os homens descarregam sua devassidão...
     Ísis joga a toalhinha no chão, levanta e tenta fugir, Antonio Carlos a segura.
PASTOR SILAS
É o demônio começando a se manifestar!
ANTONIO CARLOS (Para todos)
Deixa conversar com ela um segundinho... (Arrasta Ísis para um canto) Não falei pra aguentar?
ÍSIS
Não vou suportar tanta humilhação! A gente foge pro Paraguai, Antonio! Começa uma vida nova lá!
ANTONIO CARLOS
Grande idéia! Quem sabe eu recupero aquele Corsa que me roubaram em 2006!
ÍSIS (Aflita)
Eu não vou suportar Antonio...
ANTONIO CARLOS
Vai sim! Foco Ísis! Foco!
ÍSIS
Eu não vou aguentar...
ANTONIO CARLOS
Vai sim! Nem pense em desistir!
    Ela volta a posição anterior, recoloca a toalhinha na cabeça.
PASTOR SILAS (Para os outros que observam a cena)
É o diabo se manifestando. Reconheceu minha autoridade e tá tentando fugir com o rabo entre as pernas. (Recoloca a mão sobre a cabeça dela) Oh Pai... pobre da mulher que não faz do seu corpo seu templo... A boca desta mulher Pai... (Ísis olha desesperada para Antonio Carlos, ele faz um gesto enérgico para ela se aquietar) A boca dela... (Ísis ameaça fugir e Antonio Carlos ameaça tirar o cinto pra bater nela. Ísis desiste.) ... Por piores e mais infames  as palavras que saírem dela, jamais atingirão a infâmia de receber, em silêncio, o jorro pecaminoso de um pênis intumescido! Feito um rio fora do seu leito, miríades de espermatozóides vagaram sem rumo por esta boca mundana, vendo fracassar seu nado frenético e suicida a procura do ventre inexistente... BABILÔNIA! Eis aqui a última das suas prostitutas! Com a autoridade que você me deu, oh Pai, ordeno que o diabo que fixou morada nesse corpo se manifeste agora!
ÍSIS (Para Antonio Carlos aflita)
E agora? O que eu faço?
ANTONIO CARLOS (Pra ela)
Incorpora! Incorpora!
ÍSIS
Incorporar o quê?
ANTONIO CARLOS
A pomba-gira!
ÍSIS (Desesperada)
Eu não sei como é que faz!
ANTONIO CARLOS (Aflito)
Porra! Sê não vê televisão?
PASTOR SILAS
Eu vou contar até três e ele vai se manifestar, oh Pai... Um...
DELEGADO PAIXÃO (Para o Inspetor Delmiro)
É agora! Não fica na frente. Não fica na frente. DELMIRO
Tá certo Doutor. Mas eu to com medo...
PASTOR SILAS
É dois...
ANTONIO CARLOS
Vai! Vai! Vai!
ÍSIS
Eu num sei! Eu num sei!
ANTONIO CARLOS
Agora! Agora!
PASTOR SILAS
É três...
      Tempo. Todos se entreolham aguardando a ‘manifestação’. O Delegado Paixão é o primeiro a falar.
DELEGADO PAIXÃO
Xiii.... Acho que faiô!
      Nesse instante o inspetor Delmiro incorpora uma pomba-gira. Com o susto o delegado Paixão cai da cadeira. Com os gestos característicos de uma incorporação o inspetor Delmiro vai para frente do palco sob os olhos surpresos do restante. Entra música de umbanda, ele dança e canta a música abaixo:

DELMIRO
Olha a pomba-girê! / Olha a pomba-gira!
Olha pomba-girê, olha lá!
É a pomba-gira!  

Eu vim aqui pra beber. / Eu  vim aqui pra gozá.
Eu vim aqui pra fazê, meu sinhô / Teu zóio revira!

Olha a pomba-girê! / Olha a pomba-gira!
Olha pomba-girê, olha lá!
É a pomba-gira!  
Eu sou filha do fogo. / Eu sou amiga do Mar.
Eu to aqui minha gente! / Eu vim pra trabalhar!

Olha a pomba-girê! / Olha a pomba-gira!
Olha pomba-girê, olha lá!
É a pomba-gira!
 
DELEGADO PAIXÃO (Indo até a Pomba-Gira)
Delmiro! Que palhaçada é essa? Ficou doido?
POMBA-GIRA (Sempre usa um tom malicioso e enérgico. Trejeitos de mulher. Sua postura é sempre altiva e arrogante, deixando claro que tudo e todos no local estão abaixo dela.)
Tu baixe a voz pra falar comigo, ordinário! Aqui não tem nenhum Delmiro. Aqui tem a pomba-gira Maria da Encruza.
DELEGADO PAIXÃO
Pois acabe com isso agora, não acredito nessas coisas! (Ele avança pra cima dela, ela avança pra cima dele e ele da uns pacinhos atrás. Está assustado com ela. Os outros apenas olham boquiabertos.)
POMBA-GIRA
Pois se não acredita, posso lhe provar. Posso contar todos os seus podres. O apelido que as putas te deram  na zona. Conto inclusive a brincadeirinha do senhor  com aquela minha colega, a Tati Loura... Posso falar?
DELEGADO PAIXÃO (Em pânico)
NÃO! Que isso... O Brasil é um pais multicultural e religioso. De fato... pode ser uma  manifestação espírita.
POMBA-GIRA
Tem certeza? Não quer duvidar mais um pouquinho? Um bocadinho só... to doida pra contar o lance da Tati Loura... Doutor delegado.
DELEGADO PAIXÃO
Eu acredito! Eu acredito! Mas você baixou no lugar errado, isso aqui ainda é uma delegacia.
POMBA-GIRA
Vim cobrar o que tão me devendo! Tem um homem aqui em dívida comigo. E comigo o pagamento é a vista!
DELEGADO PAIXÃO (Para Antonio Carlos irado)
Até isso, Seu Antonio Carlos? Deus me defenda de estourar um cano e precisar dos seus serviços!
ANTONIO CARLOS
EU?
DELEGADO PAIXÃO
O senhor sim! Encanador dos infernos!
POMBA-GIRA
Não é dele que to falando safado!
DELEGADO PAIXÃO (Surpreso)
O que? Tudo bem...tenho lá as minhas fraquezas... Não vou negar que vo.... (Não sabe como tratar a Pomba-gira) a senho... o senho... Não vou negar que Vossa Senhoria tem alguma razão.  Mas nunca prometi nem lhe devo nada!
POMBA-GIRA
Não é de você que to falando ordinário. E aí de ti se um dia me dever alguma coisa!
DELEGADO PAIXÃO
Tá falando de quem então?
POMBA-GIRA (Tom enérgico)
Salustiano! Venha aqui agora! Eu falei agora!
    Todos se entreolham sem entender com quem ela fala.
DELEGADO PAIXÃO
Mas quem é Salustiano?
PASTOR SILAS (Constrangidíssimo)
Sou eu. Silas é abreviação. Vocês me dão um minutinho...
      Pastor Silas vai até o canto onde está a Pomba-gira, ar de criança que vai levar bronca. No diálogo entre eles não vai se ouvir nada que o pastor diz, apenas a voz da Pomba-Gira. A fala inaudível do pastor será marcada por uma gesticulação intensa, na tentativa vã de se justificar.
MARIA AUXILIADORA (Para os outros)
É agora! O pastor Silas vai fazer o diabo fugir com o rabo entre as pernas.
POMBA-GIRA (Para Maria Auxiliadora)
E você cale sua boca! Que de coisa entre as pernas você não entende nada. Desde 1993.
    Pastor Silas faz sinal de ‘calma’ para Maria Auxiliadora, inicia seu diálogo silencioso com a Pomba-Gira.
DELEGADO PAIXÃO (Olhando para fora aflito)
Meu Deus do céu... E se alguém da corregedoria aparece? Como vou explicar ? A culpa é de vocês!
ANTONIO CARLOS
O que temos com isso? Eu disse pra deixar pra lá. Não levar adiante.
ÍSIS
É bem feito. Quem mandou ir na conversa dessa louca!
DELEGADO PAIXÃO
E quem mandou a senhora chupar o encanador em plena via pública?
ANTONIO CARLOS
Eu sou engenheiro hidráulico!
DELEGADO PAIXÃO
Como é que era o barulho dona Maria?
MARIA AUXILIADORA
Stlam,stlam,stlam...  Stlam,stlam,stlam... (A Pomba-gira faz sinal pro pastor parar suas explicações e observa a discussão dos três...) Stlam,stlam,stlam...
POMBA-GIRA
Pois se fez assim  fez errado ! Tava chupando uma pica ou tocando castanhola?
ÍSIS (Indignada)
Eu não admito ser tratada desse jeito! Eu não admito!
POMBA-GIRA
Você não admite? Tu respeite minha patente cachorra!  Entre as putas você é soldado raso e eu General!
    A Pomba-gira parte pra cima de Ísis que corre pelo palco perseguida por ela.
ÍSIS (Indo se esconder atrás de Antonio Carlos)
Antonio pelo amor de Deus ela vai me bater!
ANTONIO CARLOS (Tomando a frente)
Vai ter que passar  por cima de mim!
    A Pomba-Gira dá um tapa na cara dele, um tapa ‘estalado’ e ele cai longe.
POMBA-GIRA
Toma safado! Tipo à toa... Tanto homem macho por aí e essa ordinária vai chupar logo isso. Tem mais serventia chupar um limão.
ÍSIS
Delegado! Delegado! O senhor não vai fazer nada? Ela vai me bater em plena delegacia.
POMBA-GIRA (Desafiadora)
Isso delegado! Tome uma atitude, parta pra cima de mim! Me dê motivo pra revelar a coisa entre o senhor e a Tati Loura.
DELEGADO (Inseguro, não sabe o que fazer)
Eu....eu...eu creio que o Pastor Silas, um profissional da área, pode lidar melhor com a situação. Pastor Silas, por favor.  
PASTOR SILAS (Timidamente)
Dona Maria vamos conversar dona Maria. É tudo que lhe peço....
MARIA AUXILIADORA (Pensa que é com ela)
Conversar o que Pastor?
POMBA-GIRA
É comigo que ele tá falando. (Olhando para Maria Auxiliadora com lástima) Desde 93... Essa coitada nem castanhola toca mais... Chega a dar pena... (Para Ísis, severa) Peça desculpas agora a sua General! Agora!
ÍSIS (Encolhida temendo levar um tapa)
De... desculpe , minha  General!
POMBA-GIRA
Minha comandante em chefe!
ÍSIS
Minha comandante em chefe.
POMBA-GIRA
E você é o que?
ÍSIS
Uma soldado raso... senhora.
POMBA-GIRA
Uma soldado raso tocadora de castanhola!
ÍSIS
Uma soldado raso... tocadora de castanhola...senhora...
POMBA-GIRA (Voltando para posição anterior, em conversa com o Pastor)
Agora melhorou... (Para o Pastor Silas) E o senhor! Onde estão as obrigações que tá me devendo Salustiano? Em poucas palavras que essa conversa tá muito cumprida!
DELEGADO PAIXÃO (Para Ísis)
Imaginava qualquer coisa da senhora aqui hoje... menos que fosse entrar pro serviço militar...
ÍSIS (Ar humilhado)
O senhor me respeite.
DELEGADO PAIXÃO
Como quiser soldado. (Bate continência) 
POMBA-GIRA (Respondendo ao Pastor)
Pois enfie no cú a sua Cidra! Que eu lhe pedi champanhe!
MARIA AUXILIADORA (Olhando aflita)
O Pastor Silas ta tendo trabalho pra espantar o demônio...
DELEGADO PAIXÃO
É fácil... É só nosso Pastor pagar o que lhe deve.
MARIA AUXILIADORA (Indignada)
O senhor tem noção do que ta dizendo?
DOUTOR PAIXÃO
Se tivesse tinha colocado os três no xadrez logo de cara!  Que raiva eu to de vocês !
ANTONIO CARLOS
Raiva? Até  na cara eu tomei!
POMBA-GIRA
Pois se achar ruim eu te dou outro. Sê quer?
ANTONIO CARLOS
Não,não,não... Tá tudo certo.
POMBA-GIRA (Para o Pastor)
É nessa sexta-feira sem falta! Tudo de primeira com cigarro na cigarrilha! Homem... tu que mande Cidra de novo. Tu que me afronte dessa maneira que nem sei o que lhe faço... Não fiquem tristes... Maria da Encruza vai subir. (Vai até o Delegado, ar matreiro, malicioso) Por falar em afronta... O senhor Delegado vai permitir que um espírito devasso invada seu terreiro e mexa nas suas galinhas?
DELEGADO PAIXÃO (Se esquivando)
Não tem nada de meu aqui... é da União. São galinhas públicas.
POMBA-GIRA
No senhor baixou o espírito conciliador? Cadê aquele macho que partiu pra cima de mim? Me ofenda homem! Me insulte! Todo mundo quer saber o lance do senhor com a Tati loura...
DELEGADO PAIXÃO
Se um Pastor  lhe trata com tanta deferência, não sou eu, um ex-ateu, que vou lhe afrontar.
POMBA-GIRA
E quando deixou de ser ateu?
DELEGADO PAIXÃO
Assim que lhe conheci.   
POMBA-GIRA
Tá certo... Na próxima eu conto... Salustiano! Puxe o ponto que eu vou subir! (Começa a rodar)
PASTOR SILAS
Olha a pomba-girê! / Olha a pomba-gira!
Olha pomba-girê, olha lá!
É a pomba-gira! ...
POMBA-GIRA
Ta fraco!
PASTOR SILAS
Dona Maria vem aqui me ajudar.
MARIA AUXILIADORA
Mas eu não sei como faz pastor.
PASTOR SILAS
Canta comigo.
PASTOR SILAS / MARIA AUXILIADOR
Olha a pomba-girê! / Olha a pomba-gira! ...
DELEGADO PAIXÃO (Empurrando Ísis e Antonio Carlos para junto dos outros dois)
Vocês também! A culpa de tudo é dos dois. E foram os únicos que se divertiram hoje!
OS QUATRO
Olha a pomba-girê! / Olha a pomba-gira!
Olha pomba-girê, olha lá!
É a pomba-gira!...  
     Depois de rodar a Pomba-Gira ‘sobe’. Volta inspetor Delmiro. Ele ameaça cair, os outros o amparam.
DELMIRO (Confuso)
Nossa... o que aconteceu? Acho... acho que tive uma queda de pressão...
DELEGADO PAIXÃO
Queda de pressão?! ... Sempre te achei  esquisito. Mas não imaginava que fosse tanto!
DELMIRO
Não to entendendo doutor. Foi só uma vertigem... O que aconteceu? O espírito se manifestou na moça?
DELEGADO PAIXÃO
Manifestou! Não nessa moça...foi numa outra.  Agora to entendendo a mania de puxar conversa  no mictório. Ta proibido entendeu! Proibido!
DELMIRO
Ué...  que foi que eu fiz?
DELEGADO PAIXÃO
Por enquanto nada, mas quando  fizer...vai ser ruim de explicar.  Vá pra recepção e se concentre no trabalho.
DELMIRO
Ta certo doutor. Vou pegar sal na cantina... pra subir a pressão.
DELEGADO PAIXÃO (Parte pra cima dele, Delmiro se esquiva)
Mas que sal coisa nenhuma! Depois vai ser o que? Champanha, cigarro na cigarrilha?!
DELMIRO
Mas doutor...
DELEGADO PAIXÃO
Já pra portaria!
    Delmiro sai confuso com a reação do delegado.
DELEGADO PAIXÃO
Esse mundo ta perdido meu Deus... E quanto a vocês...  Decidam se vão levar o caso adiante e sumam daqui!  
ANTONIO CARLOS
Tudo se resolveu. O pastor expulsou o espírito maligno.
MARIA AUXILIADORA
Eu sabia Pastor. O senhor é mesmo ungido pelo poder de Deus.
ÍSIS
Justamente! Não tem sentido  levar o caso adiante. Eu fui liberta!
ANTONIO CARLOS (Bem canastrão)
Aleluia! Oh gloria! O senhor conseguiu pastor... o senhor conseguiu... (Beija a mão dele, Ísis repete o mesmo gesto)
MARIA AUXILIADORA
Foi o espírito santo se manifestando! Ele fala através do  Pastor. (Beija a mão dele também)
PASTOR SILAS (Reassumindo o ar de messias do início)
‘E a sua fama correu por toda a Síria, e traziam-lhe todos os que padeciam, acometidos de várias enfermidades e tormentos, os endemoninhados, os lunáticos, e os paralíticos, e ele os curava. ‘ Mateus 4:24 ‘.
DELEGADO PAIXÃO
Pera aí! Pera aí! Eu to louco pra me livrar de vocês. Louco! Mas tamanha afronta a lógica não dá pra tolerar. A dona Ísis foi liberta de que se o demônio tava no Delmiro?
ÍSIS
Mas foi de mim que ele saiu. Estava no meu corpo. Eu fui liberta.
ANTONIO CARLOS
Aleluia!
DELEGADO PAIXÃO
Na senhora coisa nenhum, ele tava atrás do nosso pastor. E a intimidade deles é tanta que  se conhecem até pelo  nome de Batismo. Onde já se viu?
PASTOR SILAS
Para lidar com os ardis dos demônios, temos que ser mais ardilosos do que eles, doutor. Pra mostrar nossa autoridade.
MARIA AUXILIADORA
Oh gloria!
ANTONIO CARLOS
Aleluia!
DELEGADO PAIXÃO
Autoridade? O que ele costuma lhe dizer quando ao invés de champanha o senhor traz Cidra?
PASTOR SILAS
‘A obra de cada um se manifestará; na verdade o dia a declarará, porque pelo fogo será descoberta; e o fogo provará qual seja a obra de cada um.’  Coríntios 3:13 .
ÍSIS
O importante é que estou liberta doutor Paixão.
ANTONIO CARLOS
Aleluia!
DELEGADO PAIXÃO
Pois não imagina a vontade que estou de lhe prender. Agora chega. Vamos por um ponto final nessa estória. Agora!
PASTOR SILAS
Creio que o caso não precisa ser levada adiante.
DELEGADO PAIXÃO
Sei.  Podemos dar por encerrado?
PASTOR SILAS
Podemos. (Ísis e Antonio Carlos comemoram) Peço apenas que o senhor Antonio Carlos e dona Ísis façam uma justa reparação aos membros da igreja. Pela cena  lamentável.
ANTONIO CARLOS
Claro Pastor é só dizer.
MARIA AUXILIADORA
Que tal as toalhinhas sagradas de Israel, Pastor? PASTOR SILAS
Tava pensando nisso.
ANTONIO CARLOS
Feito! Digo... claro, vai ser um prazer. Afinal essa igreja vai ser nossa também. Não é Ísis?
ÍSIS
Claro!  Não vou perder um domingo.
PASTOR SILAS
Nem é pelo valor monetário e sim pelo simbolismo. Dê as toalhinhas pra eles Dona Maria, todas que tiver.
MARIA AUXILIADORA (Pegando na bolsa)
Tenho dois fardos com mil , nem vai precisar contar. (Tira dois rolos amarrados pelo meio de dentro da bolsa) Tem duas mil toalhinhas.
ANTONIO CARLOS (Surpreso)
DUAS MIL?! Pêra aí... não eram cem reais cada?
MARIA AUXILIADORA (Sorridente)
Isso.
ANTONIO CARLOS
Mas cem reais... vezes duas mil...( Calcula ) Dá duzentos mil reais!!
PASTOR SILAS
Exatamente. Mas não importa o valor... e sim o significado...
DELEGADO PAIXÃO
E eu achando que a estória tinha se esgotado... Ficou  interessante de novo.
ANTONIO CARLOS
Mas Pastor... não precisa exagerar. Umas dez ou quinze  já tava bom.
PASTOR SILAS
Do alto daquela janela, duas mil ovelhas observaram aquela cena infame. Não foram dez ou quinze...
ÍSIS
Paga depois a gente vê, Antonio.
ANTONIO CARLOS
Tá doida? Nem todo capital de giro da  empresa dá isso. No máximo cem mil.
PASTOR SILAS
Tenho certeza que dona Ísis vai contribuir. Como boa serva  que se tornou.
MARIA AUXILIADORA
Aleluia! Oh Glória!
DELEGADO PAIXÃO (Cínico)
Aleluia....
ANTONIO CARLOS
Pêra aí pastor! Também não é assim... O senhor tá exagerando.
PASTOR SILAS
Pois se vai voltar atrás com sua decisão, eu volto com a minha. ‘O justo se informa da causa dos pobres, mas o ímpio nem sequer toma conhecimento. Provérbios 29:7’. Delegado houve mudança nos planos.
ÍSIS
NÃO! Antonio pelo amor de Deus. São nossas vidas  em jogo.
ANTONIO CARLOS
Não tenho esse dinheiro! Mesmo usando o capital de giro da empresa. E ela vai à falência sem capital de giro.
ÍSIS
Com o divórcio não vai ter nem casa! Uso minhas economias pra completar o valor. Eu dou os outros cem mil.
ANTONIO CARLOS
Ok então... Vamos fazer o seguinte. Nem tem banco aberto agora. A gente encerra o assunto com o delegado e amanhã passamos na Igreja e acertamos.
PASTOR SILAS
Pra que esse trabalho todo seu Antonio Carlos? (Tira um computador de bolso do paletó) Tenho meu computador. A gente faz tudo rapidinho. (Coloca o computador sobre a mesa, digita) Pronto! É só fazer a transferência, minha conta é essa...
        Ísis e Antonio Carlos trocam olhares assustados.     Entra Delmiro.
DELMIRO
Dá licença doutor. Tem um homem aí fora querendo entrar. Não sei se devo deixar.  Vim perguntar.
DELEGADO PAIXÃO
Como assim ? Que homem é esse?
DELMIRO
O marido da dona Ísis.
ÍSIS (Aflita corre em direção ao computador do Pastor)
Rápido Antonio! Pelo amor de Deus transfere logo o dinheiro!
ANTONIO CARLOS
Mas Ísis!
ÍSIS
ANDA LOGO!
       A contragosto ele faz a transferência. Depois ela.
ÍSIS
Pronto! Pelo menos acabou esse tormento.
MARIA AUXLIADORA (Toda sorridente entrega os fardos de toalhinhas para Antonio Carlos)
Tá aqui. Se quiser mais é só falar que eu arranjo pro senhor.
    Antonio Carlos olha com ar de choro para o fardo.
ÍSIS
Delegado, pelo amor de Deus delegado, o problema foi resolvido. Não deixe meu marido ficar sabendo, foi uma batida de carro. Só isso!
DELEGADO PAIXÃO
Pois que seja. Delmiro, manda entrar o corno. Digo o homem.
ÍSIS (Segura Delmiro e depois ajoelha diante do delegado)
Não! Delegado eu imploro. Não fale nada pra ele. O Antonio Carlos arruinou a empresa dele. Eu usei cem  mil da poupança da família.  Eu imploro!
     Ela tenta beijar a mão dele e ele se esquiva.
DELEGADO PAIXÃO
Mas afinal eu sou quê? Uma velha fuxiqueira? Sou delegado de polícia e não inspetor de alcova. Não vou falar nada.
ÍSIS
O senhor dá a sua palavra?
DELEGADO PAIXÃO
Dou.
ÍSIS
O senhor jura por Deus!
DELEGADO PAIXÃO
Juro! Vamos acabar logo com isso. A gente fala da batida de carro e encerra o assunto. Manda entrar o homem...
     Delmiro sai e traz o marido Leopoldo.
DELEGADO PAIXÃO
Muito prazer Doutor Leopoldo. Sou o delegado paixão. Conforme sua mulher disse por telefone, foi uma batida de carro boba. Nem precisava ter vindo aqui.
LEOPOLDO
Fico feliz delegado, mas o que me traz aqui é assunto bem mais sério. Bem mais grave que esse.
ÍSIS
Como assim Leo?  
LEOPOLDO (Indo em direção a Ísis, ar sério e preocupado).
Ísis... nem sei como dizer...To chocado.
ÍSIS (Assustada)
Leo pelo amor de Deus... chega de emoção por hoje, se tá me assustando...
LEOPOLDO
Ísis... Você tem que procurar um centro de mesa branca urgente. Precisa desenvolver sua mediunidade...
ÍSIS
Como assim?
LEOPOLDO
Sua Tia Palmira morreu! Sua prima Zélia ligou. Coração. Morreu de repente.
ÍSIS (Aliviada)
Puxa... é isso.
LEOPOLDO
Eu falei do seu telefonema pra ela. A Zélia ficou boba...
DELEGADO PAIXÃO
Pelo visto o senhor também...
LEOPOLDO
Muito! O senhor não tem noção de quanto.
DELEGADO PAIXÃO
Olha que tenho sim.
LEOPOLDO (Reparando na presença de Antonio Carlos)
Seu Antonio Carlos... O que o senhor faz aqui?
ANTONIO CARLOS
E eu?
ÍSIS
Ele... ele está... ele está... (Olha para o Delegado esperando que a ajude numa mentira)
DELEGADO PAIXÃO
O que ele não está é prestando serviço a delegacia. Sendo assim deve estar fazendo alguma outra coisa.
LEOPOLDO
Como assim? Não entendi!
ÍSIS
Ele cruzou comigo na rua. No momento do acidente e me acompanhou. Olha que sorte a minha.
DELEGADO PAIXÃO
E dele...
ÍSIS
A gente já tava saindo. Chega de tomar o tempo do delegado.
LEOPOLDO
Mas e o motorista que bateu em você?
ÍSIS
Fugiu! Nem pra perguntar se eu tava bem...
LEOPOLDO
Sei... Então porque veio na delegacia? Pra que abrir ocorrência?
ÍSIS
Ora Leo... pro seguro é claro! Como espera que paguem o concerto?
LEONARDO
Pois é... isso que eu ia perguntar... Eu passei em casa e seu carro tava na garagem.
ÍSIS (Sem saber o que responder)
Me-meu carro...
LEOPOLDO
Sim, seu carro.
ÍSIS
Na garagem?
LEOPOLDO
Sim Ísis, na garagem. E não tem nada nele, nem um arranhão... Aliás... nem parece que  saiu da garagem hoje.
ÍSIS
Ora Leo, tanto saiu que bateram nele. O seu Antonio me trouxe. Não foi seu Antonio?
ANTONIO CARLOS
Isso! Dona Ísis tava muito nervosa. Então deixou o carro  na garagem e viemos pra cá...
DELEGADO PAIXÃO
Dando uma passadinha no beco da dona Maria Auxiliadora....
LEOPOLDO
Beco da dona Maria Auxiliadora? Como assim?
ÍSIS
É gíria! Gíria policial. Beco da Maria Auxiliadora é o mesmo que “Delegacia”. Tem até um Rap com essa gíria. Fui pro beco da Maria Auxiliadora, beco da Maria Auxiliadora... Quer dizer que foram pra delegacia.
LEOPOLDO
Nunca ouvi isso na vida.
ÍSIS
Claro! Você não gosta de Rap.
LEOPOLDO
Sei... Desculpe mas... quem são essas pessoas?
ÍSIS
É o Pastor Silas e a dona Maria... Maria... Maria José.
LEOPOLDO
E eles são?...
ÍSIS
São.... são...num sei Leo. Quando cheguei eles já estavam aqui. Nossa! Pra que tanta pergunta?
LEOPOLDO
É que se tá estranha... Não entendi porque veio a delegacia.
ÍSIS
Ora Leo, por causa do seguro.... Como espera que  concertem o carro?
LEOPOLDO
Mas não tem o que consertar...
ÍSIS
Ta vendo? Isso que tinha medo! Por isso vim na delegacia, pra depois você não brigar comigo... Mas não adiantou nada... (Fingi chorar)
LEOPOLDO (Abraçando, terno)
Ta bom... tá bom... Não te perturbo mais, não precisa chorar...
ÍSIS (Dramática)
Faço tudo pra te agradar. Por isso vim na delegacia. Agora você diz que o carro não tem nada.
LEOPOLDO
Não, não, não... Não chora meu amor. Ta bom, eu não pergunto mais nada. 
    Ele a beija na boca.
DELEGADO PAIXÃO
Que saudade da Pomba-Gira Maria da Encruza...
ÍSIS
Leo por favor... tá todo mundo olhando...
DELEGADO PAIXÃO
Dona Ísis... uma perguntinha...a senhora escovou os dentes no caminho até aqui?
LEOPOLDO
O que? Mas que raio de pergunta é essa delegado? Que modos são esses? Tá falando com a minha mulher!
ÍSIS
Deixa pra lá Leo! O delegado tá aborrecido, tomamos o tempo dele. Vamos embora agora. Acabou tudo bem, tudo resolvido.
LEOPOLDO
Como bem? A sua Tia Palmira morreu.
ÍSIS (Sem graça)
Claro! A tia Palmira... Mais um motivo pra irmos. Vamos Leo.
LEOPOLDO
Ta tudo certo Delegado?
ÍSIS (Respondendo por ele)
Claro que sim! A gente já tava até saindo.
LEOPOLDO
Não precisa assinar nada ?
ÍSIS
Não. Ta tudo direitinho...
LEOPOLDO
Vamos ter que voltar aqui ?
ÍSIS
Não vai ser preciso, se for ele avisa. Vamos.
LEOPOLDO
Podemos ir então delegado?
ÍSIS
Podemos Leo! Podemos!
LEOPOLDO
Ísis, por favor, deixa o delegado responder. Podemos ir delegado?
DELEGADO PAIXÃO (Após breve pausa)
Claro. Ta tudo resolvido.
ÍSIS (Aliviada)
Ufa... enfim um final feliz.
LEOPOLDO
Mas que final feliz ? Sua Tia Palmira morreu...
ÍSIS
Claro Leo, claro. Falei de outra coisa. Até logo a todos, até logo seu Antonio.
ANTONIO CARLOS
Até logo dona Ísis... Doutor Leopoldo. Meus sentimentos pela perda na família.
      Os dois se encaminham para saída. O delegado os chama.
DELEGADO PAIXÃO
Um minuto. Uma pergunta a vocês.  A todos. (Os dois voltam) Vocês conhecem a fábula do sapo e do escorpião?
ÍSIS
Delegado outra hora delegado.
LEOPOLDO
Ouvi quando criança, nem lembro. Por quê?
DELEGADO PAIXÃO (Ar dramático, sério)
Pois bem, é assim: Diz a fábula que o sapo e o escorpião estavam na beira de um rio querendo atravessar.   Como só o sapo sabia nadar, o escorpião pediu uma carona. Mas o sapo, assustado claro, perguntou : " E se você me picar? ". O escorpião respondeu: “Eu não sei nadar ,  se eu picar você morreremos os dois.”   Com esse  argumento, o sapo concordou.  Quando estavam no meio do rio o escorpião deu uma picada fatal no sapo. Surpreso e indignado, o sapo perguntou: “Por que fez isso? Vamos morrer os dois! ” O escorpião respondeu: “Não pude evitar, é da minha natureza...”
ÍSIS (Aflita)
Delegado pelo amor de Deus, Delegado! O que tem isso a ver com o que tá acontecendo aqui?
DELEGADO PAIXÃO
Nada dona Ísis. Nada... Mas tem tudo a ver com o que vou fazer em seguida. (Vai até Leopoldo põe a mão em volta do seu ombro, como se fossem bons amigos) Doutor Leopoldo... o senhor é corno!
LEOPOLDO (Se desvencilhando do abraço)
Como é que é? Mas o que tá acontecendo aqui? O senhor encheu a cara de cachaça?
DELEGADO PAIXÃO
O senhor provou coisa bem pior ao beijar dona Ísis.
ÍSIS
Delegado! O senhor deu sua palavra!
LEOPOLDO
Eu não admito falta de respeito com a minha mulher! Eu sei o tipo de mulher que ela é !
DELEGADO PAIXÃO
Nós também sabemos! Todos aqui sabem. Mas o seu Antonio Carlos sabe mais.
LEOPOLDO
O que? Ísis o que tá acontecendo aqui afinal?
ÍSIS (Furiosa)
Eu não imaginava que o senhor podia ser tão canalha, delegado!
DELEGADO PAIXÃO
Nem eu dona Ísis... nem eu ... confesso a senhora que me surpreendi.
LEOPOLDO
Pois eu exijo que peça desculpas a minha mulher agora!
DELEGADO PAIXÃO
Não se altere seu Leopoldo. Não esqueça que o senhor é cardíaco.
LEOPOLDO
Cardíaco coisa nenhuma, que bobagem é essa?
DELEGADO PAIXÃO
Ah não?! Menos mau, então é só corno. Melhor! Assim posso lhe falar sem rodeios. Dona Ísis foi presa fazendo sexo oral no beco da dona Maria Auxiliadora.
LEOPOLDO
Agora enlouqueceu de vez! Ela foi presa dentro da própria delegacia?
DELEGADO PAIXÃO
Não! O beco da dona Maria Auxiliadora é beco mesmo. Ela é a Maria Auxiliadora e ele o pastor que mandou chamar a polícia. E esse, que o senhor já conhece, é o dono do membro que sua mulher abocanhou com uma volúpia nunca vista! O pastor Silas pode confirmar o que lhe digo.
LEOPOLDO (Para o pastor)
O que o senhor tem a dizer sobre isso?
PASTOR SILAS
Bem... a presente situação não anula o acerto anterior. As toalhinhas sagradas de Israel não podem ser devolvidas.  
LEOPOLDO
O que? Do que esse homem tá falando? O que está havendo aqui Ísis?
ÍSIS
Vamos embora Leo! Essas pessoas são loucas. Inclusive esse Delegado. Gente decente não frequenta delegacia!
LEOPOLDO
Concordo. Mas você também tá aqui!  
DELEGADO PAIXÃO
Entendo suas dúvidas doutor Leopoldo, todo corno passa pela fase da negação. Depois da revolta e finalmente da superação. Podia ser muito pior.
LEOPOLDO
Pior como?
DELEGADO PAIXÃO
Podia ser comigo.
ÍSIS (Aflita)
Leo... olha pra mim Leo! Nos meus olhos! Uma vez você me perguntou se seria capaz de te trair... E o que foi que respondi?
LEOPOLDO
Respondeu que não.
ÍSIS
Então Leo! Esqueça essas pessoas, vamos pra casa.  Minha Tia Palmira morreu! Eu to sofrendo! Ninguém respeita minha dor... (Fingi chorar, Leopoldo a abraça)
LEOPOLDO
Calma amor... não chora.
DELEGADO PAIXÃO (Exasperado)
Mas não é possível! Tanta demora pra ir da negação a revolta. Serei mais explícito! Enquanto o senhor trabalhava pra dar a dona Ísis o luxo que ela se julga merecedora. Ela, dona Ísis, fazia... Como foi mesmo que o senhor falou Pastor Silas? No seu discurso?
PASTOR SILAS
Em que parte?
DELEGADO PAIXÃO
A parte da latrina.
PASTOR SILAS
Ah sim... “Enquanto o pastor ministrava a palavra, esta mulher fazia da própria boca a latrina onde os homens descarregam sua devassidão...”
DELEGADO PAIXÃO
Bela oratória. A parte dos espermatozoides também é muito bonita, muito inspirada. O senhor tem talento...
PASTOR SILAS
Não sou eu... é o espírito santo falando por mim.
LEOPOLDO (Chocado)
Meu Deus...
ÍSIS
Leo... me ouve Leo... Você me conhece, não vai acreditar nesse louco? 
LEOPOLDO (Aflito)
Mas uma coisa tá me encucando...
ÍSIS
O que?
LEOPOLDO
Quando te beijei... você... tava com um gosto estranho na boca...
DELEGADO PAIXÃO
Pois é...situação escatológica... A propósito seu Leopoldo, esclareça uma dúvida minha. Que gosto o senhor sentiu?
LEOPOLDO
Um gosto estranho... parecia...parecia sabão de coco...
DELEGADO PAIXÃO
Puxa... pensei que fosse avinagrado.
PASTOR SILAS
Mas  esperma não é de frutose? Pensei que fosse doce.
DELMIRO
Não. Ele é alcalino, igual leite de magnésia.
DELEGADO PAIXÃO
Se contar como aprendeu isso eu te entrego pra corregedoria Delmiro.  Mas vamos perguntar a quem conhece. Dona Ísis... que gosto tem esperma?
     Todos olham para ela. Leopoldo entende enfim, vai pra cima dela.
LEOPOLDO
EU TE MATO!
       Eles seguram Leopoldo.
DELEGADO PAIXÃO
Finalmente entrou na fase da revolta.  Essa é a realidade, meu caro Doutor Leopoldo. Enquanto o senhor dava duro no batente, Dona Ísis mamava no encanador. Como é o barulho dona Maria?
MARIA AUXILIADORA
Stlam...stlam...stlam...stlam....
DELEGADO PAIXÃO
Em plena via pública. Repare como o som lembra o tocar de castanholas. Dona Maria...
MARIA AUXILIADORA
Stlam...stlam...stlam...stlam....
DELEGADO PAIXÃO
‘Feito uma sobrevivente esquecida da destruição de Sodoma e Gomorra.’ Essas palavras são do nosso inspirado pastor. O senhor não merecia tamanha afronta nem o Seu Antonio Carlos tamanho privilégio.
DONA MARIA AUXILIADORA
Stlam...stlam...stlam...stlam....stlam...
DELEGADO PAIXÃO
Só quando solicitado, dona Maria.  Essa a real situação. Que já foi solucionada entre as partes. Sendo assim peço que se retirem.  
LEOPOLDO
Acertado coisa nenhuma! Eu exijo uma explicação Ísis!
ÍSIS (Aflita)
Eu... eu fui obrigada! Ele me ameaçou!
ANTONIO CARLOS (Horrorizado)
O que? Tá doida?
ÍSIS (Aflita, abraça Leopoldo).
Disse que faria coisas terríveis com você se eu não cedesse... a sua luxúria! As suas obscenidades!
ANTONIO CARLOS (Aflito)
Ísis pelo amor de Deus... Já botei minha empresa a falência... Delegado o senhor sabe, ela tá mentindo.
DELEGADO PAIXÃO
Até uma criança percebe isso. Mas aos olhos da lei isso tem que ser provado. Até lá vai desfrutar da nossa hospitalidade. O que não é muito recomendável num crime sexual.
ANTONIO CARLOS
O que?
DELMIRO
Mas doutor, o Perninha tá no xadrez.
DELEGADO PAIXÃO (Surpreso)
O Perninha? Mas não tinha sido transferido?
DELMIRO
Cancelarem. Os presos da outra cadeia souberam. Ameaçaram matar o carcereiro se o Perninha fosse  pra lá. Seu Antonio Carlos junto dele... sei não doutor...
ANTONIO CARLOS
Ísis pelo amor de Deus!
ÍSIS
Eu fui estuprada! Eu sou a vitima aqui. Você tem que acreditar Leopoldo.
ANTONIO CARLOS  
Pelo amor de Deus delegado! O senhor sabe  a verdade. Vai deixar um inocente com um  marginal  perigoso?
DELEGADO PAIXÃO
A sua inocência tem que ser demonstrada. E o Perninha tá mais calmo essa semana. Não tá Delmiro?
DELMIRO
Como calmo doutor? Ele tentou matar o Baianinho e o Julião.
DELEGADO PAIXÃO
Isso foi no sábado. A semana começa no Domingo.
DELMIRO
Ah é... Tem razão... Essa semana tá calmo.
ANTONIO CARLOS
Não faça isso Ísis! Já arruinei minha empresa, quer arruínar minha vida?  
ÍSIS (Para Leopoldo, dramática)
Acredite em mim Leopoldo... o Senhor Perninha é que vai correr perigo. Ele é um homem terrível... (Aponta para Antonio Carlos) Por isso cedi... Tive medo das maldades que ele ia te fazer... Foi pra te salvar Leopoldo... pra te salvar....
DELEGADO PAIXÃO
Nossa!  Maria da Encruza deve estar morrendo de orgulho.  Na certa vai promovê-la a primeiro tenente.
LEOPOLDO
Pois eu tenho uma sugestão delegado...
DELEGADO PAIXÃO
E qual seria?
LEOPOLDO (Jogando Ísis para junto de Antonio Carlos)
Manda essa daí pro Perninha também!
ÍSIS
Mas Leo...
LEOPOLDO
Chega! O que resta é salvar minha dignidade.
DELEGADO PAIXÃO
Vai ser difícil Doutor Leopoldo. Ainda assim vou torcer pelo senhor.

LEOPOLDO
Sou um executivo conceituado Delegado! Tenho um nome a zelar. O dono da empresa não admite falhas morais de nenhum tipo. É um conservador fanático.  Essa estória não pode sair daqui!
PASTOR SILAS
Quem sabe o senhor queira  umas toalhinhas sagradas de Israel. Acabou. Mas eu mando dona Maria ir buscar.
LEOPOLDO
Mas que tipo de maluco é esse sujeito?
ÍSIS
Foi um momento de fraqueza Leo... Um desatino...
LEOPOLDO
Mas não tinha sido estupro? Ta subindo de categoria? Daqui a pouco vira um ato divino. (Toca o celular dele. Atende.) Alô... To resolvendo um problema de família Ramirez, toca a reunião sem mim... Que vídeo? Pelo amor de Deus tô com problema sério aqui , toca sem mim! (Desliga)
ÍSIS
Não podemos acabar um casamento assim. Vai esquecer tudo que vivemos?
LEOPOLDO
Claro que não! Esse gosto de sabão  na boca vou lembrar pra sempre!
ÍSIS
Está satisfeito Delegado? Destruiu a minha vida!
DELEGADO PAIXÃO
Não seja exagerada, dona Ísis. As coisas sempre podem  piorar mais.
LEOPOLDO (Celular toca, ele atende)
Alô... Pelo amor de Deus Ramirez! O problema é grave aqui, deixa esse vídeo pra depois! (Desliga nervoso)
DELEGADO PAIXÃO (Para o Pastor e Maria Auxiliadora)
Mas uma coisa tá me encucando. Em que momento  chamaram a polícia? Até agora não entendi...
DONA MARIA AUXILIADORA
Por causa do Antonino. Ele quase se mata na escada.
DELEGADO PAIXÃO
Como assim?
PASTOR SILAS
No desespero pra pegar meu celular emprestado. Subiu a escada quenem um foguete. Aí a gente subiu também.
DELEGADO
E pra que o garoto queria o Celular?
PASTOR SILAS
Não tenho ideia.  
DELEGADO PAIXÃO
To ouvindo um barulho lá fora Delmiro, vá ver o que é.
         Delmiro sai.
LEOPOLDO
O importante é essa estória morrer aqui! O Doutor Camargo Pontes, meu patrão, é um neurótico. Tudo pra ele mancha a imagem da empresa.
DELEGADO PAIXÃO
Seria por causa da câmera do celular? O lance do Antonino?
LEOPOLDO (Assustado)
Como assim câmera? (Toca o celular dele)
DELEGADO PAIXÃO
Meu caro Leopoldo, eu no seu lugar estaria tendo um péssimo pressentimento...
LEOPOLDO (Atendendo o celular)
Aí meu Deus... (No telefone) De que vídeo sê está falando Ramirez? ... O QUE? NA INTERNET? ... Não! Não é minha mulher! Deve ser alguma vagabunda, alguma garota de programa. É parecida só... Não é Ramirez! Ficou maluco? ... Ela faz o quê, Ramirez?...
MARIA AUXILIADORA
Stlam...stlam...stlam...stlam....stlam...
LEOPOLDO
Por quanto tempo?...
MARIA AUXILIADORA
Stlam...stlam...stlam...stlam....stlam...
LEOPOLDO
É montagem! Uma mulher normal teria parado pra respirar! Nem Golfinho tem tanto fôlego assim...
MARIA AUXILIADORA
Stlam...stlam...stlam...stlam....stlam...
LEOPOLDO (Para Maria Auxiliadora, Irritado com os sons)
Cala a boca ! Não é com você Ramirez. Não mostre a ninguém, é uma sósia da minha mulher. Só isso!... O Antonio Carlos Valentin também aparece?! Como sabe quem é ele? ... Ele presta serviços à empresa... Mas é outro sósia. Claro!... Como é que é Ramirez?... O logo do carro dizia o quê?... ‘ A&C Hidráulica ‘... Sei. Tá bom Ramirez é a vaca da minha mulher! Mas pelo amor de Deus não mostra esse vídeo a ninguém! Se o Doutor Camargo Pontes souber disso eu to acabado! ... Foi ele que te mostrou o vídeo?! Mas como é possível? ... O neto dele que achou?! Mas ele só tem oito anos?! ... Foi o outro... O de seis anos... Sei... (Faz o sinal da cruz, ar de derrota) O doutor Camargo Pontes tá do seu  lado e quer falar comigo... Um minuto... (Põe a mão no fone. A todos) Vocês poderiam ficar em silêncio um minuto, vou falar com o dono da empresa. Provavelmente ele vai encerrar a minha carreira de executivo. (Destapa o fone) Pois não Doutor Fontes...  (Afasta o fone como se alguém estivesse gritando do outro lado) O senhor tá coberto de razão... (Afasta o fone novamente) Casei com uma ordinária! Homem nenhum faz isso de propósito!... (Afasta o fone) Em que isso afeta a empresa?...  (Afasta o fone) E os bons serviços prestados? ... (Afasta o fone) Como é? ... (Afasta o fone) Eu entendi! Não precisa me escorraçar. ... (Afasta o fone) Eu tenho a minha dignidade... (Afasta o fone) Eu já entendi... (Desliga o telefone) Doutor Paixão o senhor poderia me emprestar sua arma um minuto?
DELEGADO PAIXÃO
É evidente que não! Vai matar a mulher na minha frente?
LEOPOLDO
Não é pra isso... eu vou me matar...
DELEGADO PAIXÃO
Mas que drama é esse Doutor Leopoldo? Só por perder a carreira, a mulher e cem mil reais.
LEOPOLDO (Tomando um susto)
Cem mil reais? Como assim?
PASTOR SILAS
Volto a repetir! As toalhinhas sagradas de Israel não podem ser devolvidas.  Seria um sacrilégio.
DELMIRO (Entrando assustado de arma em punho)
Botaram fogo no carro do seu Antonio Carlos!
DELEGADO PAIXÃO
O que? Quem?
DELMIRO
Uma mulher completamente louca! Uma tal de Alcineide.
ANTONIO CARLOS (Assustado)
Meu deus do céu... é a minha mulher! Ela toma remédio controlado.
DELEGADO PAIXÃO
E porque não prendeu ela ?
DELMIRO
Eu tentei! Ela me atacou com uma faca de cozinha!
DELEGADO PAIXÃO
E deixou a mulher fugir?
DELMIRO
Claro que não! Quem fugiu fui eu.  Ela tá vindo aí pra matar o seu Antonio Carlos.
ANTONIO CARLOS (Indo de um lado pro outro em pânico)  
Ai meu Deus! Deixa eu me esconder! Me leva pra cela, pra junto do Perninha! Eu quero ficar com o Perninha!
LEOPOLDO (Ar de lunático, de maluco).
Delegado Paixão... o senhor  me empresta  sua arma?
DELEGADO PAIXÃO (Sacando a arma pra se proteger da mulher com a faca)
Deixe as ideias suicidas pra depois! Tem uma louca  vindo aí!
LEOPOLDO (Indo em direção ao delegado pra tomar sua arma)
Não é suicídio. EU VOU MATAR ESSES DOIS!
      Os outros correm pelo palco apavorados enquanto Leopoldo tenta tirar a arma do delegado Paixão, Delmiro aponta o revólver para o lado onde vai entrar a louca com a faca.
DELEGADO PAIXÃO (Tentando se desvencilhar de Leopoldo)
Me ajude Delmiro! Delmiro!
DELMIRO (De arma em punho apontando para fora de cena)  
Não dá! A doida entrou! A doida entrou!
        No embate com Leopoldo, Delegado Paixão dá três tiros pro alto. Os outros gritam e correm em pânico de um lado pro outro. Caos total. Baixa o pano.

FIM





REGISTRO:  11997

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