VÁ EMBORA, SENHOR DURVAL







Textos estão protegidos pelas Leis brasileiras de Direito Autoral. É obrigatório que se solicite permissão para ser montado. Não fazê-lo será passível de ações legais. Para solicitação, falar com o autor DURVAL CUNHA  pelo e-mail: altamirando66@hotmail.com


AUTOR
Durval Cunha
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E-MAIL : altamirando66@hotmail.com . 





VÁ EMBORA SENHOR DURVAL!



PERSONAGENS:

SR.DURVAL
DONA BETH  ( Representante do patrocinador )
DONA ÉRICA ( Diretora de teatro que vai dar o curso )
DONA ALEXANDRA ( Secretária )              

              Sala de reunião.  Entra o Candidato Sr.Durval acompanhado de Dona Alexandra.  Dona Beth e Dona Érica estão sentadas em frente a lousa. Dona Alexandra senta-se ao lado delas ficando de frente para o senhor Durval. Dona Érica faz as apresentações. 

DONA ÉRICA
Pois então, senhor Durval. O seu texto foi escolhido para a segunda fase da nossa seleção. Meu nome é Erica, sou diretora teatral e vou ministrar o curso de dramaturgia. Essa aqui é a Beth, representante do patrocinador. E essa é a Alexandra, secretária do núcleo de dramaturgia aqui do teatro. O senhor vai passar por essa última entrevista e posteriormente informaremos o resultado, ok?! Vamos começar falando um pouco do senhor. O senhor escreve há muito tempo Senhor Durval?
SR.DURVAL
Sim, um bom tempo já. Atualmente trabalho como redator do NNF.  Mas faço de tudo um pouco.
DONA BETH
E NNF seria o que exatamente?
SR.DURVAL
“Nóis Na Fita”. Da zona leste. Têm outros.
DONA ÉRICA
‘Nóis Na Fita’?! Seria tipo, “Nós do Morro”? Uma ONG?
SR.DURVAL
Não chega ser uma ONG. É tipo assim uma espécie de PCC. 
         As três caem no riso.
DONA ALEXANDRA
O senhor ta confundindo as siglas, senhor Durval.  O PCC é um grupo criminoso. 
SR.DURVAL
Olha dona Alexandra... essa coisa de crime é relativa. Pode ser crime pra quem segue uma lei, mas pode não ser pra quem segue outra. 
              As três se entreolham sem entender. 
DONA ALEXANDRA ( Para Dona Érica)
Ele ta brincando, né?
DONA ÉRICA 
Claro  Alexandra.  Sr Durval... O senhor parece estar um pouco nervoso. Fique tranqüilo, isso é só uma conversa. O senhor disse que era redator. Mas redator de que?
SR.DURVAL
Como disse pra senhora, eu faço de tudo um pouco. Sempre tive essa facilidade pra escrita. Se a senhora me mostrar sua assinatura uma vez, eu copio na hora. Fica igualzinho!
DONA ÉRICA 
E que propósito tem isso?
SR.DURVAL
Ora... pra preencher o cheque.
DONA ÉRICA 
O senhor preenche seus cheques com a letra dos outros? 
SR.DURVAL
Não. Eu preencho o cheque dos outros com a letra deles. 
DONA BETH
Pra quê?
SR.DURVAL
Pra descontar!
              As três se entreolham assustadas.
DONA ALEXANDRA ( Para dona Beth, por trás das costa de dona Erica)
To com medo desse cara... esse cara é esquisito.
DONA ERICA
Mas isso aí que o senhor faz senhor Durval, é crime!
SR.DURVAL
Mas foi o que disse antes. Pra quem segue uma lei pode ser, mas pra quem segue outra pode ser ofício.
DONA ERICA
Acho que a gente não está se entendendo. O que o senhor redige nesse ‘ Nóis Na Fita ‘?
SR.DURVAL
Muita coisa. As atas de reuniões, os memorandos internos e principalmente os comunicados a imprensa. Redigi um relatório detalhado sobre as condições subumanas que nossos companheiros enfrentam nas colônias.  
DONA BETH 
Que colônias, senhor Durval?
SR.DURVAL
As colônias penais. Nessa última operação os comunicados a imprensa saíram da minha mão. São de minha lavra. 
DONA ÉRICA 
Que operação?
SR.DURVAL
Ora... os ônibus queimados, os ataques as delegacias...
              As três se entreolham assustadas.
DONA BETH 
Mas quem faz isso são criminosos, pessoas do mal, que andam armadas. O senhor ta querendo nos convencer que é uma delas?
SR.DURVAL
Gente eu disse isso desde o início... Nessa profissão ninguém usa crachá nem tem carteira assinada. Mas quanto a andar armado... 
              Ele abre a jaqueta. Está armado com uma 7,65mm, arma de tamanho avantajado. Elas ficam horrorizadas.
DONA ALEXANDRA (Para dona Beth) 
Aí meu Deus, ele é bandido...
DONA ÉRICA (Tentando manter o controle) 
Sr Durval isso é uma seleção para um curso de dramaturgia. Aqui ninguém queima ônibus.
SR.DURVAL
Nem eu! Eu só cuido da parte burocrática do Nóis Na Fita. É o que to tentando explicar. Tenho essa facilidade pra escrita e queria aprimorar.
DONA BETH 
Mas senhor Durval... as pessoas aqui tem um perfil um pouco diferente do seu...aqui ninguém anda armado.
SR.DURVAL
Mas eu ando! Se alguém precisar vou ter o maior prazer em emprestar. 
DONA BETH
Bem... O seu texto foi selecionado entre uma centena pela dona Erica ( Olha furiosa para Érica ) . E a Dona Érica vai brindar o senhor e a nós com uma explicação...
DONA ÉRICA 
Bom... o senhor tem um jeito peculiar de escrever. Uma veia cômica muito forte...
SR.DURVAL ( Não entendendo ) 
Como assim?
DONA ÉRICA (Insegura) 
É uma comédia... não é?
SR.DURVAL
Claro que não! A mãe do cara morre.
DONA ÉRICA (Confusa) 
A Elvira?
SR.DURVAL
Não! A Elvira é uma galinha.
DONA ERICA 
Como galinha, senhor Durval?! O personagem pede  dinheiro pra ela pra comprar pão?
SR.DURVAL
Pra galinha?
DONA ÉRICA 
Pra Elvira!
SR.DURVAL
Mas a Elvira é uma galinha.
DONA ÉRICA 
Como galinha? O Décio e a Jussara são filhos dela.
SR.DURVAL
O Décio e a Jussara transam no galinheiro. O Décio pisa na Elvira.
DONA ÉRICA 
Como transam? Eles não são irmãos?
SR.DURVAL
São ué... E a Elvira é uma galinha.
DONA ÉRICA 
Mas na cena do almoço estão Décio, Jussara e Elvira! Décio diz: mamãe sirva a mesa. Os dois são irmãos, a terceira pessoa ali é a Elvira, a mãe!
SR.DURVAL
Não! O Décio diz: mamãe ‘servida’ à mesa... A Elvira ta do lado ciscando.
DONA ÉRICA  ( Horrorizada ) 
Quem tava ao molho pardo... era a mãe deles??
SR.DURVAL
Claro.
DONA ÉRICA 
Mas isto não tem lógica. A mãe deles era amante do dono da venda. Numa cena que acontece depois, adiante na linha do tempo, os dois são presos num motel! Como é possível se ela já tinha sido morta e comida?
SR.DURVAL
Não! Quem foi pro motel com seu Jonas, dono da venda, foi a Elvira!
DONA ÉRICA (Exasperada) 
Mas a Elvira não é uma galinha?
SR.DURVAL
É! E também a amante misteriosa do dono da venda.
DONA BETH 
Chega! Chega! Já deu gente. Já deu... Ta bom, seu Durval. O senhor já pode ir embora. Vamos avaliar o seu texto com o maior carinho.  E depois, se for o caso, entramos em contato. Pode ir agora.
SR.DURVAL
Mas é só isso? Não poderia detalhar um pouco mais o meu currículo?
DONA ERICA 
Não vai ser preciso! Né  Alexandra?
DONA ALEXANDRA
Claro! (Levanta) Eu acompanho o senhor até a saída.
SR.DURVAL
Ta certo. (Levanta ) Não quero tomar o tempo das senhoras. (Senta novamente) Vou só contar uma passagem.  Uma coisa que trago dentro do coração...
DONA BETH
Não precisa senhor Durval. Já que ta dentro do seu coração faz o seguinte... deixa aí. Assim ninguém invade a sua privacidade.
SR.DURVAL
É coisa rápida, dona Beth.  É rapidinho. (As três se entreolham aflitas) Se eu to no crime hoje é porque tive um trauma de infância. Que reflete até hoje na minha vida. Meu pai... era um lavrador...
DONA BETH
Melhor não, senhor Durval. Vai que pinta polícia e a gente sabendo ‘coisas’ do seu pai, pode sujar pra ele... Alexandra acompanha o senhor Durval até a saída.
SR.DURVAL
Que isso, dona Beth? Meu pai era um lavrador, trabalhou a vida inteira na roça.  Se eu vi esse homem calçando um sapato três vezes na vida, foi muito.
DONA ÉRICA
Então ta! Mas rapidinho senhor Durval. O outro candidato já ta aí fora esperando. O senhor tem um trauma de infância por causa do seu pai...
SR.DURVAL
Pois é, dona Érica. Se hoje eu sou o que sou e não sou boa coisa... É por causa desse trauma de infância. Eu era moleque... cinco ou seis anos no máximo...
DONA ALEXANDRA
Mas será que não dava pra ir direto ao trauma? Ganhava tempo....
SR.DURVAL
Eu chego lá, dona Alexandra. Eu chego lá. Meu pai... um lavrador. Homem grosso, de poucas palavras, que trabalhava de sol a sol.  Domingo pra ele não existia!  A gente vivia em dois alqueires de terra, junto com minha mãe. A imagem que guardo de meu pai é de um homem curvado no sol de enxada na mão...
DONA ÉRICA
Aí então o senhor resolveu virar dramaturgo! Que bom! O seu pai iria ficar muito orgulhoso do senhor. Alexandra acompanha o senhor Durval até a saída.
SR.DURVAL
O pior é agora,  dona Érica. A gente vivia em dois alqueires de terra. Terra invadida é claro! Quando a roça já tava em ponto de colheita... numa noite...os homens vieram... (Se emociona) Desculpa... Devia ser a mando dos donos da terra, sei lá! (Dramático) Vieram de tocha na mão e sangue nos zóio... Botaram fogo na roça de meu pai... Dona Érica, Dona Beth, Dona Alexandra... Eu vi meu pai ajoelhar naquele chão de terra e chorar... Chorar feito criança de colo. Chorar de a lágrima brotar nos olhos, escorrer pelo rosto e molhar a camisa. Queimaram tudo! Na maldade! Não sobrou um único pé de maconha! Queimaram tudo...
DONA ALEXANDRA (Horrorizada)
Ma - maconha?!
SR.DURVAL
É dona Alexandra. Os dois alqueires de maconha queimando formou uma nuvem no céu. Que cruzou o morro, o rio e baixou sobre a cidade... Aí se deu o desassossego... Foi um tal de criança acordar assustada com o bicho-papão e mãe levantar e dar de cara com o bicho-papão em pessoa do lado da cama! Gente saindo de camisola, até pelado pela rua, caçando disco-voador, borboleta colorida, fadinha de luz... Quem acreditava em duende, viu! Quem acreditava em mula-sem-cabeça, também! Teve um sujeito que 
passou a noite transando com a Marilyn Monroe e acordou nu abraçado com sua vozinha de 80 anos.  Um grupo  se armou e tomou a caixa d’água. Passaram a noite trocando tiros com a esquadra Marciana que tentava invadir a Terra. O quarto grupamento militar foi chamado e cercou a cidade. Até hoje ninguém conseguiu encontrar uma explicação... Quarenta por cento das freiras do convento das Carmelitas engravidou. A madre superiora nunca se recuperou. Hoje ela faz programa por trinta reais num beco perto da rodoviária. O sonho de meu pai... se transformou em fumaça... (Se emociona)
DONA BETH
E o senhor, com o trauma, virou dramaturgo! Mas chega de tanta emoção. (As três praticamente o arrastam em direção a saída) Pode fazer mal...
DONA ÉRICA
Nós não temos o direito de ficar tomando seu tempo.
DONA BETH
Pois é!  Seus amigos podem estar precisando do senhor pra queimar algum ônibus, atacar alguma delegacia...
DONA ALEXANDRA
Não precisa vir mais aqui não, viu Senhor Durval. A gente manda o resultado via e-mail... No segundo semestre só... Do ano que vem....
SR.DURVAL (Se desvencilhando delas)
Não! Não foi aí que eu comecei a escrever. Depois do acontecido, eu minha mãe e meu pai, fomos morar na favela do sapo. Meu pai se entregou a bebida. Minha mãe, não! Ela sempre bebeu. E ficavam os dois o dia inteiro no barraco, bêbados. Virei arrimo. Tive que vender muito limão em cruzamento pra comprar cachaça e sustentar a minha família...
DONA BETH  (Aflita)
E com o trauma, o senhor virou dramaturgo! Finalmente!
DONA ÉRICA
O senhor pode ir embora tranqüilo. Tem tudo pra ser escolhido.
DONA ALEXANDRA
É! Mas a gente entra em contato. Não precisa vir aqui não. A gente manda um e-mail... Não sou eu quem manda e-mail, não! É outra pessoa...
SR.DURVAL
As senhoras não estão entendendo... Foi aí que eu conheci o padre Eustáquio.
DONA BETH
Que coisa bonita. O senhor então se entregou a religião, a Deus... e depois a dramaturgia... (Aflita) Alexandra manda o próximo candidato entrar que o senhor Durval já ta saindo...
SR.DURVAL
Não é nada disso. Eu fui preso! Me estressei com o dono do mercadinho que veio com um papo de não vender cachaça a menor. Se chego em casa sem cachaça tomo uma surra de criar bicho.
DONA ÉRICA
Pelo amor de Deus senhor Durval! O que um padre tem haver com isso?
SR.DURVAL
Eu conheci ele na cadeia...
DONA BETH
Ele então te mostrou os valores cristãos e dramatúrgicos de uma vida com Jesus?
SR.DURVAL
Que nada! O cara era viado!
DONA BETH
Agora nós entendemos! O senhor conheceu um padre viado, ator, que o levou a dramaturgia! Isso é comum. O teatro está infestado de viado. Por isso muita atriz se desespera e vira sapatão. Depois larga tudo e vai cantar MPB.
SR.DURVAL ( Horrorizado com o comentário )
Que isso, dona Beth? Muito me admira a senhora, uma profissional da área, uma pessoa conceituada na profissão, reforçar um preconceito desses... Não é nada disso.
DONA BETH
Afinal de contas, senhor Durval. Deixando os prólogos de lado, quando o senhor teve contato com dramaturgia? Com um texto de teatro?
SR.DURVAL
Eu fiz uma adaptação de Édipo.
DONA ÉRICA (Espantada)
O senhor fez uma adaptação de Édipo?!
SR.DURVAL
Do meu jeito. O legal da estória não acontece na peça. Que é ele matar o pai e traçar a mãe. Eu foquei nesse ponto. O problema é que eu não tinha ator de verdade pra trabalhar, só o pessoal que tava internado comigo no Bento Gusmão.
              As três se entreolham assustadas. Alexandra ameaça chorar, Dona Erica a consola.
DONA BETH
Eu tenho certeza que não vou gostar da resposta... mas  vou perguntar.... Bento Gusmão é o que senhor Durval?
SR.DURVAL
É uma casa para reeducação de pessoas com distúrbios graves de comportamento. 
DONA BETH
Sei... mas numa linguagem mais coloquial seria o que exatamente?
SR.DURVAL
Manicômio judiciário.
       Alexandra tem uma crise de choro, dona Érica a ampara.
SR.DURVAL
Gente... o que dona Alexandra tem?
DONA ÉRICA
Ela ta um pouco assustada, senhor Durval. Ela pensou que o senhor fosse “só” bandido....
SR.DURVAL
Assim vocês me ofendem... Eu sou de paz. Não faço mal a uma mosca.
DONA BETH
Mas senhor Durval... na sua narrativa o senhor era um menino, preso e com problemas com um padre gay. Nessa segunda parte o senhor já é adulto, montando Édipo no manicômio judiciário...
SR.DURVAL
Mas a senhora é que me mandou ir direto ao ponto. Nos anos de manicômio é que tive acesso a livros e textos de teatro. Quanto ao padre, foi meu primeiro surto psicótico. Que me levou, tempos depois,  ao manicômio judiciário. 
DONA BETH
Surto psicótico... o que aconteceu, assim...exatamente?
SR.DURVAL
Dona Beth eu me lembro muito pouco do acontecido. Tava na igreja, o padre achando que eu ia cair nas safadezas dele. Eu com o seu talão de cheques no bolso. Já sabia imitar a assinatura dele direitinho. Tava só esperando ele se distrair pra fugir com o talão. Foi aí que senti um cheiro forte de chocolate.
DONA BETH
Chocolate?
SR.DURVAL
É. Eu sempre sinto esse cheiro antes de ter uma crise. Chego a ficar com gosto de chocolate na boca. Depois do cheiro de chocolate só me lembro de flashes. Do som de vidro quebrando. O padre gritando alguma coisa. Uma claridade. Depois o padre saindo pela janela com a batina pegando fogo. 
DONA BETH
Mas ele... ele se queimou muito?
SR.DURVAL
Bom... num sei. Nem fez diferença. Ele morreu na queda. A gente tava na torre da igreja.
DONA ÉRICA
E o senhor já teve muitos surtos? 
SR.DURVAL
No passado sim. Hoje não. Tomo meus remédios, não corro o menor risco.  O último, inclusive, foi naquele posto de gasolina na marginal pinheiros. Hoje é uma pracinha, a Praça do Sabiá.
DONA ÉRICA
Mas o posto que tinha ali não sofreu um atentado? Depois fizeram a praça...
SR.DURVAL
Pois é... foi justamente nesse dia que fui lá colocar gasolina na moto. Lembro do frentista dizendo que o óleo tava baixo e escuro e se eu não queria trocar... Aí veio um cheiro forte de chocolate, um gosto na boca, comecei a salivar. Daí não vi mais nada. Acordei na margem do rio no meio do mato a uns cem metros do posto. A pista tava interditada. Tinha viatura de polícia e de bombeiro pra todo lado. O posto já tinha explodido. Eu tava meio zonzo, achei que tinha caído um avião lá.
DONA ÉRICA
Mas seu Durval... morreram oito pessoas. Duas por causa da explosão e seis a tiros... (Temerosa) Só uma hipótese : o seu surto não pode ter algo a ver com isso?
SR.DURVAL
Pois é dona Érica... eu sempre tive essa dúvida. Mas prefiro acreditar numa grande coincidência. O pessoal do ‘Nóis Na Fita’ acha que fui eu! As senhoras não têm noção do preconceito que tenho que enfrentar.  Nunca quis trabalhar na parte administrativa e sim na operacional. Mas me reprovaram no exame médico! Alegaram desvio de conduta, esquizofrenia, sociopatia grave além de possíveis comorbidades desconhecidas e potencialmente perigosas. Vocês  acreditam?! Até uma criança sabe que alguém com tudo isso seria, no mínimo, um louco. A senhoras não acham?
              As três se entreolham assustadas e respondem hesitantes.
AS TRÊS
A gente acha senhor Durval... A gente acha sim...
SR.DURVAL
E o pior é que me proibiram até de andar armado! 
DONA BETH
Mas o senhor ta armado, senhor Durval...
SR.DURVAL
Escondido! Deus me livre se descobrem. Outro dia passei por um constrangimento. O pessoal da cúpula tava reunido na sala, aí eu entrei pra entregar  o balancete. Alguém tinha deixado um revólver sobre a mesa. Quando eu entrei a falação parou na hora. As pessoas olharam pra mim, olharam pro revólver.  Na mesma hora uma mão surgiu e tirou o revólver de lá. Só aí a falação voltou. Me senti humilhado... Ninguém naquela sala tinha menos de dois homicídios nas costas e estavam armados até os dentes.... Agora eu pergunto as senhoras: tem cabimento eles terem medo de mim?
AS TRÊS AO MESMO TEMPO
Tem , senhor Durval, tem sim...
SR.DURVAL
Gente que bobagem é essa? Eu tomo meus remédios regularmente, não tenho nenhum surto há anos. Só sinto cheiro de chocolate quando passo em frente a alguma bomboniere... 
DONA ÉRICA
O senhor tem certeza? Nunca mais parou de tomar seus remédios?
SR.DURVAL
Jamais! Posso ficar sem beber, sem comer, mas tomo meus remédios toda manhã no mesmo horário, sem atrasar um minuto sequer.
AS TRÊS
O senhor tomou seu remédio hoje??
SR.DURVAL
Pois é... os remédios me deixam meio sonado e como eu vinha aqui hoje, deixei pra tomar a noite, quando chegar em casa. 
DONA ALEXANDRA (Apavorada)
Aí meu Deus! Aí meu Deus! Aí meu Deus do céu!
SR.DURVAL
Gente o que é que a dona Alexandra tem?
DONA ERICA
Não é nada! É o stress... já vai passar. (abana Alexandra)
SR.DURVAL
Pode deixar... (Tira um cigarro de maconha do bolso.  Acende, dá uma puxada, gesto característico de puxar baseado , vai até Alexandra) Dá um tapinha aqui Dona Alexandra.
DONA ALEXANDRA
Que é isso?
SR.DURVAL
Tranqüila, tranqüila.   Pode puxar sem medo.  É o espírito de Jah...
              Dona Alexandra fuma forçada o baseado.
DONA ÉRICA (Assustada)
Senhor Durval... Isso não é o que eu estou pensando??
SR.DURVAL
Claro que não! Essa é da boa. É da pura. (Aspira) Tão sentindo o cheirinho de manga rosa? Esse cheiro me deixa com uma saudade da minha infância... de meu pai...
DONA BETH
Pelo amor de Deus, senhor Durval! A Alexandra não ta acostumada com esse tipo de coisa!
SR. DURVAL
Como é que não? Eu li o currículo de vocês. Estudaram na USP não foi?
              Elas balançam a cabeça que sim. Dona Alexandra, grogue, pega o baseado e passa a fumá-lo sozinha.
SR.DURVAL
Pois então... Já devem ter sido benzidas e defumadas pela fumaça da maldita.  Mas coisa de qualidade, coisa que presta, vocês nunca experimentaram. O que vocês fumaram na faculdade era oitenta por cento cama de frango, cheio de hormônio. Não é a toa que as três tão assim... gordinhas.
DONA BETH (Primeiro mira-se para ver se está gordinha) 
Senhor Durval, por favor! Ninguém aqui fumou maconha não senhor!
SR.DURVAL
Mas que timidez é essa, dona Beth? Vão dizer que nunca mataram aula pra fumar maconha e fazer sexo a noite toda?
DONA ÉRICA (Constrangida)
Quem... nós...como assim? O senhor quer dizer... assim...o quê?
DONA BETH ( idem )
Ma-ma-ma-mas isso num. num vem ao caso! Alexandra... Alexandra!
              Dona Alexandra continua fumando com aquele ar de felicidade tola dos drogados.  
DONA ÉRICA
Alexandra pelo amor de Deus! O que sê ta fazendo?
Dona Alexandra ( Voz de drogado )
Me deixa Érica... A música ta baixa... aumenta... 
DONA ÉRICA
Que música, Alexandra?
SR.DURVAL
Deixa ela dona Érica.  Ela ta sob o efeito da Maryjane...Olha só...Parece nenê que achou o bico do peito...chega a virar os zóio.
DONA BETH
A coisa ta passando dos limites!  Senhor Durval, pelo amor de Deus... por caridade...vai embora! Nós já ouvimos todas as suas estórias... 
SR.DURVAL
Claro dona Beth, já tomei muito o tempo das senhoras.
DONA ALEXANDRA
Vai não Du...
DONA ÉRICA
Cala a boca Alexandra!
SR.DURVAL
Já deu minha hora dona Alexandra, reconheço que tomei demais o tempo de vocês. Eu sou assim, eu grudo na prosa e nem vejo a hora passar.  
     Dona Érica tenta arrancar o baseado das mãos de Dona Alexandra, que se esquiva tentando proteger o baseado.  
DONA BETH
Tira isso da mão dela Érica! O senhor já pode ir agora senhor Durval. Não vamos entrevistar ninguém hoje com Alexandra nessas condições. Pelo amor de Deus, Senhor Durval! Vá embora!
SR.DURVAL
Claro dona Beth... imagine.  Acabei tomando o dia de vocês. Vocês me desculpem. Não foi minha intenção. 
              Dona Alexandra não conseguindo mais resistir ao ataque de dona Érica, engole o baseado.
DONA ÉRICA
Alexandra pelo amor de Deus!!
DONA BETH
O que foi?
DONA ÉRICA
Alexandra engoliu o baseado!
SR.DURVAL
Não precisam se preocupar.  Isso é coisa pura, isso é coisa da natureza, é coisa de Deus. É o corpo de Jah! Senhoras... toda sorte do mundo pra vocês.  Espero voltar a vê-las em breve.
DONA BETH 
Nós também... nós também...vá com Deus senhor Durval. Que Jah o abençoe!
              Senhor Durval caminha lentamente para fora. Sai pela platéia. Dona Alexandra ameaça chamá-lo novamente e dona Érica tapa sua boca com a mão. Por fim ela grita.
DONA ALEXANDRA
Vai não Du!
DONA BETH (Exasperada com Dona Érica)
Segura ela!
DONA  ÉRICA
Ela me mordeu.
SR.DURVAL (Do meio da platéia)
Que foi dona Alexandra?
DONA ALEXANDRA
Tu vai zarpa e sem deixar um fino pa nóis? O Béck que cê me deu nem fez o sangue subir pros zóio!
DONA ÉRICA (Se apavorando com o linguajar dela) 
Meu Deus do céu Beth! Vamô ter que correr com ela pro hospital das Clínicas!
DONA ALEXANDRA
Tem mais uma parada aí Du?
SR.DURVAL (Caçando nos bolsos e voltando para o palco)
Menina... só tinha esse... (Já no palco de volta. Dona Beth e Dona Érica se desesperam) Não imaginei que vocês iriam querer... Não tem mais...
DONA ALEXANDRA
Pô.... Mô vacilão! Não tem um mano na região pra conseguir umas paradas pa gente?
DONA BETH
Não, não tem Alexandra! Senhor Durval o senhor já não estava indo? Não vamos mais poder falar com o senhor, temos que levar a Alexandra pro hospital das Clínicas pra tomar uma injeção de glicose! Senhor Durval... por favor...Vá embora!
    Alexandra ameaça falar e Dona Erica e Dona Beth a agarram e tampam sua boca.
SR. DURVAL
Gente eu já tava indo... dona Alexandra que me chamou.
DONA ÉRICA
Então ta bom senhor Durval, vá com Deus! 
SR.DURVAL
Tô indo...
    De novo ele se encaminha para fora e para no mesmo ponto anterior.  Esfrega os olhos, cambaleia, ar de quem não está se sentindo bem. Enquanto isso Dona Alexandra escapa das outras duas e ameaça tirar a blusa.
DONA ALEXANDRA
Para de me apertar vocês duas... que calor...vou tirar a blusa! 
    Ameaça tirar a blusa as duas a seguram.
DONA ÉRICA
Pelo amor de Deus Alexandra! Sê não vai ficar nua aqui!
DONA ALEXANDRA
É só a camisa... meus peitos tão pegando fogo...
DONA ÉRICA
Para Alexandra! Alexandra!
DONA BETH
Se alguém da diretoria vê ela assim... como é que vamos explicar?
DONA ÉRICA
A gente leva ela pro vestiário e dá um banho antes de ir pro médico. Ela só não pode estar pelada.
DONA ALEXANDRA
Eu quero ficar pelada! 
   Senhor Durval volta lentamente para o palco. Ar meio grogue. As três não percebem. Érica e Beth continuam lutando para impedir Alexandra de tirar a roupa.
DONA BETH (Perdendo a paciência)
Você não vai tirar a roupa!
DONA ALEXANDRA
Só um peito!
DONA ÉRICA (Dando três bofetadas nela. Que volta ao normal) 
Fica quieta! 
DONA ALEXANDRA (Voltando ao normal)
Que  isso? Porque ta me batendo?
DONA BETH
Graças a Deus! Ta melhor Alexandra?
DONA ALEXANDRA
Tô...o que aconteceu? O louco foi embora?
DONA ÉRICA  (De costas não vê que Sr. Durval voltou para o palco)
Foi! Graças a Deus esse pesadelo terminou! Rezei tanto pra Nossa Senhora de Fátima!
SR.DURVAL
Que louco?
    As três tomam um susto.
DONA BETH (Aflita)
Mas o senhor não tinha ido embora?
SR.DURVAL
Pois é... (Aspira o ar) Eu tava indo...aí me deu um negócio estranho (cheira)..coisa esquisita... 
AS TRÊS AO MESMO TEMPO
O quê??
SR.DURVAL (Olha em volta com algum suspense, cheira o ar)
Vocês também estão sentindo esse cheiro forte de chocolate?
           As três abandonam o palco em pânico e fogem pela platéia. Sr.Durval fica sozinho no palco. Ele tem um tremelique de quem recebe um espírito, saca da arma e começa a atirar. 
                                     

FIM                          




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